segunda-feira, 3 de outubro de 2016

OS ENIGMAS de PABLO NERUDA













OS ENIGMAS




O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados?
Respondo que o oceano sabe.
Por quem a medusa espera em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
Quem as algas apertam em teus braços?, perguntas mais firme que uma
hora e um mar certos?
Eu sei que perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando
como o unicórnio do mar, arpoado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras
primaveras dos mares do sul.
Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de
jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas
cor de sangue tornou a pedra lisa encheu a água-viva de luz, desfez o
seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feita de infninita
madrepérola.
Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos
habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como
tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite,
acordo nu.
A única coisa capturada é um peixe dentro do vento.


Pablo Neruda

terça-feira, 5 de julho de 2016

W. B. YEATS, Do tempo.


















O prazer do difícil


O prazer do difícil tem secado
A seiva em minhas veias. A alegria
Espontânea se foi. Algo mantém cerceado
Meu potro, como se o divino passo
Já não lembrasse o Olimpo, a asa, o espaço,
Sob o chicote, trêmulo, prostrado,
E carregasse pedras. Diabos levem
As peças de sucesso que se escrevem
Com cinquenta montagens e cenários,
O mundo de patifes e otários
E a guerra cotidiana com seu gado,
Afazer de teatro, afã de gente.
Juro que antes que a aurora se apresente
Eu descubro a cancela e abro o cadeado.




sexta-feira, 27 de maio de 2016

NIKOLA VAPTZAROV: Poeta-Operário






















PRIMAVERA


Primavera, minha branca primavera,
ainda não vivida, ainda não celebrada!
Ainda um sonho, apenas um sonho
que passa roçando os álamos.
Sem ficar.

Primavera, minha branca primavera.
Sei que chegarás tempestuosa
como uma escova chamejante.
E trarás chuvas,
trovões, tempestades,
para restaurar as ilusões
e levar nossas feridas.
Então,
como arrulharão as calhandras
quando voarem sobre os trigais.
O trabalho nos fará felizes
e seremos irmãos dos homens.

Primavera, minha branca primavera!
Quero ver teu primeiro vôo
dando vida às praças mortas
da minha terra.
Só quero ver teu sol assomar,
e depois,
em tuas barricadas,
                              morrer!

quinta-feira, 16 de julho de 2015

SONOS





















"Quando somos,
a morte ainda não chegou.
Quando a morte chegar,
já não somos".


Epicuro


(Imagem: auto-retrato em 13/07/15)

TIGRES


























Eu tive o tédio de todos os tigres.


(Imagem: auto-retrato em 13/07/15)

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

ULLA HAHN e a SEDE ENTRE OS LIMITES





















Este Verão




Este Verão ensina-me
a amar as minhas cicatrizes
a enfeitar-me com marcas de estrangulamento no pescoço

Este Verão ensina-me
a fechar à chave a amargura e fico
bem roliça e anafada pareço bem tratada

Este Verão ensina-me
a gritar o bel canto

Este Verão ensina-me
que a solidão descansa
e cresce numa mão

Este verão ensina-me
a não confundir um corpo disponível
com o desejo de felicidade

Este verão ensina-me
a ser para cada pedra um espelho de água

Este Verão ensina-me
a amar grandes bolas de sabão e pequenas
antes de rebentarem

Este Verão ensina-me
que tudo sem nós
por si continua

Este Verão ensina-me
um rosto gelado feliz

Este Verão ensina-me
tenho que ser eu a bater no tambor
quando quiser dançar

Este Verão ensina-me
a ser sem felicidade sem tristeza por uns
segundos aliada de Deus

Este Verão ensina-me
a acordar de manhã. Grata. Sozinha.

Este Verão ensina-me
que a folha do limoeiro só deita cheiro
quando a desfazemos entre os dedos.



(Ulla Hahn, Tradução de João Barrento, Freudenfeuer)

domingo, 16 de novembro de 2014

NOITE com LEONOR SCLIAR-CABRAL
















NOITE


Plena de enigmas, noite de presságios.
Insone abri a porta do jardim:
nas moitas os duendes que se amavam
emudeceram.

Um aroma de pólen, cio e néctar
impregna a mucilagem sob a grama
que as mãos vazias, ávidas maceram
até o cansaço.

Estremece ao luar a goiabeira
 os frutos caem podres pelo chão,
mole-molência rubra sob os pés
a esmagá-los.

E o corpo rola exangue pela grama
no declive de pedras e de folhas,
mistura de húmus orvalhado e sangue,
só de prazer.


(Leonor Scliar-Cabral, in De Senectute EROTICA
Imagem: foto de Anderson com Leonor, na noite de lançamento do Suplemento Especial de Poesia Ô Catarina em 14 Novembro 2014)


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

LANÇAMENTO ESPECIAL de POESIA SUPLEMENTO CULTURAL Ô CATARINA!






































Convido a todos para o Lançamento Especial de Poesia do Suplemento Cultural Ô
Catarina! 

Os melhores poetas de Santa Catarina estarão presentes!!

Abraços!!


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A SOMBRA do LEOPARDO


























grécia


UM JOGO de centauros.
Inflama
o trigo da pele;
grita teu olho,
dos pés à cabeça;
teu olho é pele,
teu olho é sol
de sêmen, desfaz
o rosto na água,
acasala tuas éguas.
Depois, lacera-te,
lapida tua boca,
bebe tua urina.
Arde a terra,
arde a carne.
Então, cada bílis
e fleuma; despido
como um deus,
abraça a deusa
do silente mistério.



Cláudio Daniel in A Sombra do Leopardo

quinta-feira, 24 de julho de 2014

DAS MULHERES














                    noiva




despida inteira

em luto e gozo
de espadas

que se entrecruzam.

tardias
são as tardes

metades -
laranjas

numa cor de lamentos.

Não soubemos

em quais águas
revoltosas

foram-se

para as agonias
dos outonos.

Fingimos

que descem
essas escadarias

vestindo o branco
dos lírios

pássaros mortos

em dentes de abandono.







mãe




geme baixo
em sua

Torre de sombras

geme alto
em seu

Carrossel de ossos

carne
de sua carne

nutre
com leite & sangue

esta fome
com face
de espanto

esgar de chumbo
e silêncio.

ganindo

despedaçada de abismos
em seus espelhos

dulçorosos.
  






E, por fim




E,
por fim

já tão tarde

e escuro

já-sem-nome

ruge e chora

onde não há
mais
espaço

nem Tempo.

Juraram
os animais

encurralados

que foram
suaves

as mãos
na lisura

de uns céus

marchetados
pela glória
de um deus-louco.

Nada, diziam.

- Mais nada!

E, por fim

um outro cais esquecido.


(Anderson Dantas, Ilha, 16/05/2014
Foto: auto-retrato)

quinta-feira, 17 de julho de 2014

DYLAN THOMAS E TUDO E TODOS




















TODOS TODOS E TODOS

I


Todos todos e todos os mundos áridos de levantam,
A idade do gelo, o oceano sólido,
Todos surgem do óleo e das crostas da lava.
O burgo da primavera, essa flor sob domínio,
Gira na Terra que faz girar as cidades de cinza
Em torno de uma roda de fogo.

E agora minha carne, minha companheira nua,
Teta do mar, o amanhã cheio de glândulas,
Verme no escalpo, cercado e sem cultivo,
Todos todos e todos, o amante do defunto,
Macilento como o pecado, a medula espumante.
Todos vindos da carne, os mundos áridos se levantam.


II


Não temas o mundo em movimento, ó mortal,
Não temas o sangue insípido e sintético,
Nem o coração no metal crivado de nervuras.
Não temas as pegadas, a moagem das sementes,
O gatilho e a foice, a lâmina nupcial,
Nem o sílex na martelada dos amantes.

Homem da minha carne, a mandíbula fendida,
Conhece agora os grilhões e o vício da carne,
E a gaiola do corvo de olhos falciformes.
Conhece, ó meu osso, a nodosa ascensão,
Não temas as hélices que fazem circular a voz
E a face para o amante rejeitado.


III


Todos todos e todos os mundos áridos se acasalam,
Cada espectro com seu espectro, o homem se contagia
Em contato com o ventre do seu povo amorfo.
Todas essas formas de placenta e do aleitamento,
Que são golpes da carne mecânica contra a minha,
Tornam quadrado nesses mundos o círculo mortal.

Faz florir, faz florir a fusão das pessoas,
Ó luz do zênite, o botão geminado,
E a flama na visão da carne.
Além do mar, o ímpeto do óleo,
A órbita e a tumba, o sangue de bronze,
Faz florir, faz florir tudo tudo e tudo.



(Dylan Thomas, Dezoito Poemas, tradução de Ivan Junqueira)




quinta-feira, 22 de maio de 2014















"Um homem que se respeite não tem pátria. Uma pátria é um visco." (E.M.Cioran)

Foto: Eu, envolto em imagens e pensamentos no Morro das Pedras, Ilha de SC

domingo, 16 de fevereiro de 2014

SEGUNDO DELIRIUM TREMENS


























SEGUNDO DELIRIUM TREMENS


Fui espadachim, algo de podre e belo,
porque rompi-lhe o ovário com cutelo,

rompendo-me a mim com mãos claudicantes.
Fui espadachim de andaimes verdejantes,

cortando o feto de rainhas virgens,
de putas nobres e bufas vertigens.

Meu pai sagrou-me, minha mãe pariu-me:
quem me teve não mais me vê: viu-me

o dia da noite, o estrondo do raio,
onde soluço e em cântaros desmaio.

Consinto em ser o império da amargura,
a lepra santa de igual criatura

postada sobre mim, no meu assédio.
Sou eu mesmo o estrume canto, o meu remédio.

Mate-me logo, o delirium tremens
de todo álcool, de todos os sêmens.



(Nauro Machado, Os Órgãos Apocalípticos, 1976)

domingo, 13 de outubro de 2013

AINDA CAI A CHUVA


























AINDA CAI A CHUVA
(Bombardeio aéreo, 1940. Noite e alvorecer)


Ainda cai a chuva
Sombria como o mundo do homem, negra como a
                                                    [nossa perdição ...

Cega como os 194 pregos
Batidos na Cruz.
Ainda cai a chuva
Com som igual ao do coração transformado
na batida do martelo
Fora do Campo Santo e os ímpios passaram ouvidos
No Túmulo:
                          Ainda cai a chuva
No Campo de Sangue onde as pequenas esperanças
se multiplicam e o cérebro humano
Alimenta sua ambição de verme com a cara de Caim.
Ainda cai a chuva
Aos pés do Homem Agonizante pendurado na Cruz.
Cristo cada dia, cada noite, pregado lá, tem
                                          [misericórdia de nós
De Dives e de Lázaro:
Debaixo de chuva a ferida e o ouro são um só.
Ainda cai a huva
Escorre o sangue do lado alanceado do Homem
                                                            [Desfalecido:
Ele carrega em Seu Coração todas as feridas - aquelas
                                                            [da luz extinta
A última faísca esmaecida
No próprio assassinado coração, as feridas da triste e
                                         [inacessível escuridão.
Nas feridas do urso acossado, - o cego e gemente urso
açoitado pelos guardas na sua desamparada carne
As lágrimas da lebre perseguida.
Ainda cai a chuva
Por isto saltarei para Deus
Que me abate -
Olha, olha como o sangue de Cristo jorra no
                                                          [firmamento:
Flui do semblante profundo que pregamos na árvore
Até o sedento coração morrer aprisionando os fogos
                                                          [do mundo
Escura mancha com aflição
Como a coroa laurel de Cesar
Então a voz de alguém soa semelhante
À do coração do homem que foi outrora
Uma criança no convívio dos brutos
Ainda amo, ainda verto minha inocente luz
E meu sangue para ti.



(Edith Sitwell, tradução de C. Ronald)

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Poesias Nunca: CAIO FERNANDO ABREU



CURTUME


Nenhum poema libertário
libera a tarde do gigantesco inútil
derramado em copos de cinza
sobre as paredes sujas.

Nenhum poema inflamado
desinflamaria o pus da paisagem mutilada
pelas chaminés vomitando fuligem
sem parar.

Nenhum poema possível
possibilita a transmutação do nada
curvado sobre cada uma das máquinas
em toques secos.

Nenhum poema pirado
pararia a voragem estúpida
gerando monstros coloridos
em papel couché.

Nenhum poema solto
soltaria outra vez as pandorgas perdidas.
Preso na gaveta, solto no vento: nenhum poema.
Nem mesmo este.



Caio Fernando Abreu, Poesias Nunca Publicadas

quinta-feira, 13 de junho de 2013

A Repetição do Silêncio: PAUL AUSTER

















NOITES BRANCAS

Ninguém aqui,
e o corpo diz: tudo que se diga
não se deve dizer. Mas ninguém
também é corpo, e o que diz o corpo
também escuta
além de ti.

Neve e noite. A iteração
de um assassinato
entre as árvores. A pena
corre pela terra: não sabe mais
o que há de ser, e a mão que a sustém
sumiu.

Mesmo assim, escreve.
Escreve: no começo,
entre as árvores, um corpo vem andando
da noite. Escreve:
o branco do corpo
é da cor da terra. É a terra,
e a terra escreve: tudo
é da cor do silêncio.

Não estou mais aqui. Jamais disse
o que dizes
que disse. E, no entanto, o corpo é um lugar
onde nada morre. E a noite toda
dentre o silêncio das árvores, tu sabes
que minha voz
vem andando para ti.



(Paul Auster, 1971-1975, tradução Caetano W. Galindo)

sexta-feira, 15 de março de 2013

O AMOR DUPLO E O DESESPERO DAS ÁGUAS


















LUNAR



Teu olho de lua
raiado de sombras.

Tua nádega branca
aureolada de lírios.

Teu beijo frio
pupila de neve.

Tua fala de harpa
mistério órfico.

Teu luzeiro verde
caracol de esmeralda.

Tua alma pesada
afugentada de estanho.


__________________________________


  


TRIÂNGULO


Vem.  e me acompanha pela torva janela
como um rastro sibilante e tépida correntude
carnosos lábios que exsudam perfeita simetria

Como as distâncias e as tatuagens ardentes de carne
que peleiam aportam cais tremescurecidos de dentro
e encontro ângulo ferido de si pela manhã cinzazul

Tristes moendas que o chão varre horas afora
silencio meus olhos na adaga do número e no gozo
das chuvas bebem-se as joias da embriaguez

Tudo tamanho de tato.  Tateio a teia, a tirana tigresa
que sobe.  As colinas da pele  o caminho de sangue
nas unhas  as encostas da alma  uma tessitura de anjos

Movem-se as asas das águas.  Elas ferem o ângulo que ri
amor marejado de temporais antes  naufrágio todo de mim
pelos campônios amarelecidos em que barro e palha morrem o canto

Tive tanto medo.


tanto.


                                       
                                             _____________________________________





IBIZA


Três vezes açambarcante
ao ruído negro
do meu centro.

do peito
da cabeça
do sexo.

com um xale escondida
as feições antigas
as farpas embaraçadas.

três vezes revivestes
no silêncio todo
de meu sangue e rumor.

enterrada a carne no rio
a boca   todos os buracos
sangrantes que fugi.

estupro  molhante onda
música encarnada vasculhante
de mim  de ti  das vagas frias

ferrugem  a miséria da casa
as tábuas frouxas do sorriso
a tristeza do veneno na boca do pai.

viestes de novo a viver, fúlgida
água, rugas descidas das Dunas
e a mover meu tempo de menino e peixe.



 ________________________________________

  



ESTRIDOR


                        Vencido.  Em volteios, vivo
                        e ao centro sempre disposto
                        dos velames em ventos vertido.

                        Pulsante.  Eu-próprio, morto
                        nos flancos disperso,  ignaro
                        dos sexos em lençóis amantíssimo.

                        Vertigem.  Vasculhamos portos
                        encontramos moscas, mansardas
                        moles mamas, mitigando fósforos.

                        Obus.  Homem, registro tardio
                        das palavras e do régio tanque
                        fogo, guerra e arte rubra do dorso.

                        Descanso.  Fera alma arremessada
                        de dentro,  este túnel que nunca
                        cavamos, este lábio que nunca mel

                        E nas mãos mádidas  maciez imersa,
                        vê o mal.  Madrepérola.  Nácar.
                        toca-me o centro, a friez da fronte.

                        Sentes.  Em meio às coxas pendentes
                        frescos mexilhões, a idade do Tempo
                        em que jorra um céu puro e deleitoso

                        A concha retida,  o vôo da fênix  o mar
                        as gaivotas vulcanizadas,  a flama do ar
                        no centro do Ser,  flores,  onde serpeia o gozo.



                                              _________________________________




SOLAR



                               Teu olho de sol
                                               lançado de luzes.

                                               Teu ventre dourado
                                               alcantilado de peixes.

                                               Tua língua quente
                                               ardência da lava.

                                               Tua música auriterra
                                               revelação do Zoroastro.

                                               Teu Templo de chamas
                                               asas marteladas do céu.

                                               Tua alma leve
                                               alquimia dos anjos. 










(Anderson Dantas, do livro inédito O Amor duplo e o Desespero das Águas
Imagem: do filme Bela Donna de Fábio Barreto)

terça-feira, 5 de março de 2013

ANJO
















ANJO

(2ª. versão)



As esculturas perderam-se na superfície da pele e das águas que não mergulharam com suas ágeis graças. Revisitado de cinzas que o fogo nem ardeu, pois a ausência é a verdade daqueles sinceros espíritos cinzelados de puro desejo.
No teatro daquelas tristezas e antigas alegrias o vento foi o branco algodão das têmporas que avançavam exauridas, ou a falta da cabeleira que o orgulho consumiu na juventude abrasadora.
Permaneço de pé, no abismo de meu fundo negror, tal como um grande pássaro que ostenta asas soporíferas e uma umidade de sangue na ponta dos lábios ou bico a estraçalhar a presa, a suposta amada que languescente desaba do degrau de seu desprezo alaranjado.
Sem cor! Retrato da dor às minhas mãos amaldiçoado, sem seu corpo ou maciez, sem nudez às escarpas lançado para morrer sem flautas, sem música, no vermelho do choro e na mandíbula da incerteza. Foi quando aturdido o atirador de facas me convidou para no circo rolar sobre as feridas, a passear no luar das geladas angústias e do poema rasgado na véspera dos dissabores.
E eu não pus nenhuma máscara e eu ria sobre meu próprio túmulo que apodrecia dentro de mim. E na hora que Satã soprou seu vômito negro, eu estava de saída para encontrar Aurora e ela me puxou para si, com uma ânsia aterradora, e me beijou as axilas e cheirou minha alma de sete facas e eu vi-me ao longo do oceano, só, com um peixe cru recitando versos de um Teatro Perdido, e ele me jogou uma rosa de espuma e um riso de sal; daí já era tarde para encontrar Pandora e então mais uma vez eu morri. Raiado de espinhos eu subi.   Ao monte. E nunca acordado despi lentamente a bainha de meu jorro. Foi quando pela lateral da galeria meu olho ficou a ver navios por cima dos marinheiros. Parti no dia seguinte e nunca mais a vi, eu ainda lembro da primeira vez que ela confiou na minha força; mesmo forte é meu desespero e minha travessia que desarruma pelos vastos campos o diário dos homens, dos bois e das aves amigas.
Em verdade, somos um Teatro que falta zarpar junto com a fome dos tubarões e livres para o vôo dos albatrozes.  Lá de cima eu fui.  Lá embaixo no inferno que suporto.  Lá discípulo de sempre.  Anjo.







(Anderson Dantas – prosa do livro inédito Cavalos do Inferno
Foto: do filme La Fille Sur Le Pont, 1999)


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

ALMA BEAT: Kenneth Rexroth






















AS VANTAGENS DA INSTRUÇÃO


Sou um homem sem ambições,
de poucos amigos, totalmente incapaz
de ganhar minha vida ou ficar mais moço,
fugindo de uma sentença justa qualquer.
Solitário, mal vestido, que importa?
À meia-noite eu faço para mim uma jarra
de vinho branco quente com sementes de cardamomo,
com a boina velha e um roupão cinza rasgado,
sento no frio escrevendo poesias,
rabiscando nas margens nus angustiados,
copulando com as gatinhas
ninfomaníacas da minha imaginação.




(tradução de Leonardo Fróes, 2003)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

EU NÃO DISSE A TODOS



















EU NÃO DISSE A TODOS


(esboços para um livro futuro)



EU NÃO DISSE A TODOS
vida da minha vida
minha filha nasceu no mar

Minha filha nasceu no mar

Uma parte de mim
ficou naquela
suspensão de vidro

Naquelas carnes tenras e sofridas
(um arroxeado de agulhas)

naqueles sonos envenenados
naqueles bebês mortos.

Uma parte de mim
é renúncia quase
guardada para o agora

E a outra
para como um cão
guardião de pêlos
e patas e dentes
(guardar para sempre
a alma-casa)

Meus olhos atentos
nos teus olhos atentos
nos pequenos lábios rosados
- e como preconiza a mãe –
olhar vívido, olhos de jabuticaba

EU não disse a todos
minha filha nasceu no mar.

Eu renuncio a morte
até ontem.



(Ilha de SC, 21/11/2012).

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

HISPANISMOS: Cesar Vallejo


























ESPERGÊNESE


Eu nasci um dia
em que Deus estava enfermo.

Todos sabem que vivo,
que sou mau: e não sabem
do dezembro desse janeiro.
Pois eu nasci um dia
em que Deus estava enfermo.

Existe um vazio
em meu ar metafísico
que ninguém pode tocar:
o claustro de um silêncio
que fala à flor de fogo.

Eu nasci um dia
em que Deus estava enfermo.

Irmão, escuta, escuta ...
Bem. E que eu não parta
sem levar dezembros,
sem deixar janeiros.
Pois eu nasci um dia
em que Deus estava enfermo.

Todos sabem que  vivo,
que mastigo ... E não sabem
porque em meu verso gritam,
escuro ranço de féretro,
ventos esfregados,
desenroscados da Esfinge
indagadora do Deserto.

Todos sabem ... e não sabem
que a Luz é tísica
e a Sombra obesa ...
E não sabem que o Mistério sintetiza ...
que ele é o corcunda
musical e triste que à distância denuncia
a passagem meridiana dos limites aos Limites.

Eu nasci num dia
em que Deus estava enfermo,
enfermo grave.


(Tradução e notas: Thiago de Mello, 1984
Espergênese: antigo termo legal que significa a aprovação de uma condenação)

Total de visualizações de página