quarta-feira, 26 de novembro de 2008

GARCIA LORCA: O Poeta contra a tirania



[O CANTO QUER SER LUZ]


O canto quer ser luz.
No escuro o canto tem
fios de fósforo e lua.
A luz não sabe o que quer.
Em seus limites de opala,
encontra-se consigo mesma
e volta.



BACO


VERDE rumor intacto.
A figueira me estende os braços.

Como uma pantera, sua sombra
espreita a minha lírica sombra

A lua conta os cachorros
Equivoca-se e começa de novo.

Ontem, amanhã, negro e verde,
rondas meu cerco de lauréis.

Quem como eu te quereria,
se me mudasse o coração?

... E a figueira grita para mim e avança
terrível e multiplicada.




VÊNUS

Assim te vi


A jovem morta
na concha da cama,
despida de flor e brisa
surgia na luz perene.

Ficava o mundo,
lírio de algodão e sombra,
assomado às vidraças,
vendo o trânsito infinito.

A jovem morta
surcava o amor por dentro.
Entre a espuma dos lençóis
perdia-se a sua cabeleira.




DESPEDIDA


Se eu morrer,
deixai o balcão aberto.

O menino chupa laranjas.
(Do meu balcão eu o vejo.)

O segador sega o trigo.
(Do meu balcão eu o sinto.)

Se eu morrer,
deixai o balcão aberto!




Federico GARCIA LORCA – Canções

domingo, 26 de outubro de 2008

TODA MULHER



82.

nós que nos amávamos tanto
hoje estamos tão longe
sem rima, sem sono
nem lembro
de como eu te achava estranho

_________________________


165.


ele prefere as nórdicas
as ricas, as putas
as filhas das tias
letradas, peitudas
alunas da puc
solteiras, taradas
mulheres pudicas
peludas, escravas
as boas de cama
mulatas, mineiras
as freiras da itália
escocesas, peladas
as bem mal-amadas
aquelas que dizem te amo
e mais nada

________________________


178.

toda mulher tem um homem que se foi
um homem que a deixou por outra
um homem que a deixou por um câncer
um homem que nem mesmo a notou
um homem que a deixou por um ideal
um homem que sumiu num temporal
um homem que não passou de dois drinques
toda mulher tem um homem que se foi
um homem que foi pego em flagrante
um homem que prometeu um brilhante
um homem que saiu para jogar
toda mulher tem um homem
que esqueceu de voltar


(Martha Medeiros)


sexta-feira, 11 de julho de 2008

O velho Buk e o amor



como ser um grande escritor

você tem que trepar com um grande número de mulheres
belas mulheres
e escrever uns poucos e decentes poemas de amor.

e não se preocupe com a idade
e/ou com os talentos frescos e recém-chegados.

apenas beba mais cerveja
mais e mais cerveja

e vá às corridas pelo menos uma vez por
semana

e vença
se possível.

aprender a vencer é difícil -
qualquer frouxo pode ser um bom perdedor.

e não se esqueça do Brahms
e do Bach e também da sua
cerveja.

não exagere no exercício.

durma até o meio-dia.

evite cartões de crédito
ou pagar qualquer conta
no prazo.

lembre-se que nenhum rabo no mundo
vale mais do que 50 pratas.
(em 1977).

e se você tem a capacidade de amar
ame primeiro a si mesmo
mas esteja sempre alerta para a possibilidade de uma
derrota total
mesmo que a razão para essa derrota
pareça certa ou errada -

um gosto precoce de morte não é necessariamente
uma coisa má.

fique longe de igrejas e bares e museus,
e como a aranha seja
paciente -
o tempo é a cruz de todos,
mais o
exílio
a derrota
a traição

todo este esgoto.

fique com a cerveja.

a cerveja é o sangue contínuo.

uma amante contínua.

arranje uma grande máquina de escrever
e assim como os passos que sobem e descem
do lado de fora de sua janela
bata na máquina
bata forte

faça disso um combate de pesos pesados

faça como o touro no momento do primeiro ataque

e lembre dos velhos cães
que brigavam tão bem:
Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.

se você pensa que eles ficaram loucos
em quartos apertados
assim como este em que agora você está

sem mulheres
sem comida
sem esperança

então você não está pronto.

beba mais cerveja.
há tempo.
e se não há
está tudo certo
também.


(Charles Bukowski, in O amor é um cão dos diabos)

sábado, 14 de junho de 2008

O objeto-fetiche




Em vez de auditivo ou cinestésico, o suporte de trabalho pode ser visual ou tátil. Neste caso, as possiblidades são infinitas.


Posso, por exemplo, começar com um objeto, natural ou artificial, que me represente ou "me interpele" e, depois, entrar em relação direta, visual, tátil ou verbal com este símbolo exterior de meu ser interior.


Posso falar com uma flor, um raminho, uma pedra, ou ainda com um ancinho ou uma terrina e expressar-lhe o que sinto ... e, depois, eventualmente, responder em seu lugar.


Joceline: - Escolhi esta velha roda de carrinho de mão que encontrei no galpão porque ela me lembrou imediatamente a liberdade, mas também a solidez ... Gosto de sua madeira marcada pelo tempo.


Terapeuta: - Você pode falar-lhe diretamente, em vez de falar dela para mim ou descrevê-la?


Joceline: - Eu gosto de você porque você teve uma vida bem cheia ... Você enfrentou obstáculos, sofreu, um dos seus raios está quebrado ... mas seu cubo central continua inteiro!... Sua madeira está apodrecendo ... e, no entanto, dá vida ao musgo ...


Terapeuta: - A roda poderia responder e falar?


Joceline - Sim! É verdade, já estou velha. Não sou mais rutilante como antes ... Mas esta pintura com que me cobriram em minha juventude não era eu verdadeiramente ... Me pintaram para atrair o jardineiro ... Mas isso não o impediu de me negligenciar! Ele acabou por me trocar por um carrinho mais moderno ... com um pneu oco, todo estufado de ar ... e se foi com ele ... (ela chora) ... Não importa! Segui meu caminho ... Ele me usou, mas não me amava verdadeiramente ... Agora sou livre ... Estou separada do corpo do carrinho, mas posso viajar sem parar" E, apesar da minha idade, ainda posso interessar as pessoas (ela chora de novo).



(Gestalt, Serge e Anne Ginger)

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Caio: pescador de sentidos



Mergulho II


Na primeira noite, ele sonhou que o navio começara a afundar. As pessoas corriam desorientadas de um lado para outro no tombadilho, sem lhe dar atenção. Finalmente conseguiu segurar o braço de um marinheiro e disse que não sabia nadar. O marinheiro olhou bem para ele antes de responder, sacudindo os ombros: “Ou você aprende ou morre”. Acordou quando a água chegava a seus tornozelos.
Na segunda noite, ele sonhou que o navio continuava afundando. As pessoas corriam de outro para um lado, e depois o braço, e depois o olhar, o marinheiro repetindo que ele ou aprendia a nadar ou morria. Quando a água alcançava quase a sua cintura, ele pensou que talvez pudesse a aprender a nadar. Mas acordou antes de descobrir.
Na terceira noite, o navio afundou.



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Nos poços


Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.



(Caio Fernando Abreu, in Pedras de Calcutá e O Ovo Apunhalado)

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

CADERNO EXPRESSIONISTA três





FIM DO MUNDO



O chapéu voa da cabeça do cidadão
Em todos os ares retumba-se gritaria.
Caem os telhadores e se despedaçam
E nas costas – lê-se – sobe a maré.

A tempestade chegou, saltam à terra
Mares selvagens que esmagam largos diques.
A maioria das pessoas tem coriza.
Os trens precipitam-se das pontes.



(Jakob Van Hoddis, 1911)





PROGRAMA



Não queremos poesia,
Queremos mágicas, artifícios,
Procuramos tapar na existência fatais vazios
E apesar de imenso esforço, uma atrofia.

Mas o que sabem vocês outros da secreta elevação,

Dos sagrados e histéricos soluços da garganta a chorar,
Quando, consumidos pelo haxixe da alma em imersão,
Beijamos o primeiro degrau, para além de cujo limiar
Os deuses moram?



(Wilhelm Klemm, 1915)





O PASSEIO



Tu, esses quartos
Fixos e as áridas ruas
E o rubro sol das casas,
A infame repugnância de todos
Os livros há muito já folheados –
Não os agüento mais.

Vem, precisamos sair da cidade
Para muito longe.
Vamos deitar-nos em
Suave gramado.
Ameaçadores e tão abandonados,
Contra o absurdamente grande,
Mortalmente azul, brilhante céu,
Levantaremos mãos choradas
E encantados,
Descarnados, apáticos olhos.



(Alfred Lichtenstein, 1913)





* Traduções de Claudia Cavalcanti.




domingo, 27 de janeiro de 2008

CADERNO EXPRESSIONISTA dois: Gottfried Benn


BELA JUVENTUDE



A boca de uma moça que há muito jazia em meio aos juncos
parecia toda ruída.
Quando abriram o peito, o esôfago era só buracos.
Acabaram achando num recanto embaixo do diafragma
um ninho de ratos jovens.
Uma das irmãzinhas pequenas morrera.
Os outros viviam do fígado e dos rins,
bebiam sangue frio e tinham
passado ali uma bela juventude.
E bela e pronta foi também a morte deles:
foram jogados todos juntos na água.
Ah, como os focinhinhos guinchavam!



(Gottfried Benn, tradução de Mario Luiz Frungillo e Luís Gonçales de Camargo)




NOIVA DE NEGRO



A nuca loura de uma mulher branca
repousava sobre uma almofada de sangue escuro.
O sol lhe maltratava os cabelos,
lambera longamente as coxas claras
e se ajoelhara junto dos seios, mais escuros,
ainda não desfigurados por vícios e partos.
Um negro ao seu lado: olhos e fronte
arrebentados por um coice de um cavalo. Havia
enfiado dois de seu imundo pé esquerdo
dentro da orelha branca e pequena dela.
Mas ela estava deitada e dormia como uma noiva:
às portas da felicidade do primeiro amor
o sangue quente e jovem na expectativa
de muitas viagens ao céu.

Até que lhe
afundassem o escalpelo na garganta branca,
e lhe atirassem um avental púrpura de sangue morto
à volta dos quadris.


(tradução de Mario Luiz Frungillo)





REQUIEM



Em cada mesa dois. Mulheres e homens entre-
cruzados. Sem tormento. E próximos e nus.
O peito esquartejado. O crânio aberto. O ventre
pela última vez agora a dar à luz.

Do cérebro aos testículos, cada um três malgas rentes.
E o templo de Deus e o estábulo infernal
agora peito a peito no chão da cuba, os dentes
a arreganhar prò Gólgota e a queda original.

O resto nos caixões. Tantos recém-nascidos:
cabelos de mulher, um peito de miúdo,
pernas de homem. De dois amantes prostituídos,
qual vindo de um só ventre, vi que ali estava tudo.



(tradução de Vasco Graça Moura)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

CADERNO EXPRESSIONISTA: Georg Trakl


IM DUNKEL



A alma silencia o azul da primavera.
Entre a úmida ramagem do ocaso,
freme a fronte dos amantes.

A cruz verdeja! Em escuro colóquio
conheceram-se homem e mulher.
No muro esquálido
o solitário vaga com seus astros.

Nas sendas do bosque, ao clarão da lua,
afundou na mata
de esquecidas caças; olhar do azul
irrompe das rochas em ruínas.


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DER SCHLAF


Malditos venenos escuros,
sono branco!
Este insólito jardim
de árvores crepusculares
cheio de cobras, borboletas noturnas,
aranhas, morcegos.
Forasteiro! Tua sombra errante
na tarde rubra,
um negro corsário
em mar de aflição e sargaço.
Esvoaçam brancas aves na beira da noite,
sobre cidades cindidas
de aço.


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KLAGE


Sono e morte, as águias sombrias
rondam-me a fronte a noite inteira:
a áurea imagem do homem
engole-a a onda fria
da eternidade. Em recifes medonhos
rompe-se o corpo purpúreo.
E queixa-se a voz escura
sobre o mar.
Irmã de imensa melancolia,
olha: um barco assustado naufraga
sob estrelas,
na face calada da noite.



(Georg Trakl, tradução de Marco Lucchesi, 1990)

sábado, 12 de janeiro de 2008

Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere





1. não rir, não lamentar,
nem amaldiçoar, mas compreender.
(SPINOZA)

2. links.
linkar Lourenço, o cheiro do ralo.
Ernest Becker, Nietzsche,
Kierkegaard, eu
e outros jogos de armar.

3. Lourenço não gosta da noiva, nem dele, nem de ninguém.
presume-se que, quem não gosta de ninguém, não teme a
morte, nem mesmo se for uma facada no coração.
perdeu. dois balaços no peito.

4. sinto-me livre para fracassar.

5. mas, se não teme morrer, o que o torna
tão angustiado? a ausência? solidão?
talvez o nervo da angústia seja a perda do pai
morto na guerra (duvidosa e fantasiosa)
sua tentativa patética e simbólica
de reconstruí-lo.

6. Muitos morrem demasiado tarde e alguns
demasiado cedo. Ainda soa estranha a doutrina:
“Morre a tempo”!
Morre a tempo: é o que ensina Zaratustra.
Sem dúvida, quem nunca vive a tempo, como iria
morrer a tempo? Antes não tivesse nascido! – É assim
que aconselho os supérfluos.

7. Quem é Paula Braun? (que bela bunda!)

8. A INVEJA DO PÊNIS
A verdadeira ameaça que a mãe representa passa a ser
vinculada à sua evidente corporalidade. Seus órgãos genitais são
usados como um conveniente foco para a obsessão da criança
com o problema da corporalidade. Se a mãe é uma deusa da luz,
é também uma bruxa das trevas. A criança vê a ligação da mãe
com a terra, seus secretos processos corporais que a prendem à
natureza: o seio com seu misterioso leite viscoso, os odores e o
sangue menstruais, a quase contínua imersão da mãe produtiva
em sua corporalidade, e não menos – algo a que a criança é
muito sensível – o caráter muitas vezes neurótico e irremediável
dessa imersão.

9. A inveja do pênis, então, surge do fato de que os órgãos genitais
da mãe foram separados de seu corpo com uma focalização do
problema de degradação e vulnerabilidade. Bernard Brodsky
observa, sobre sua paciente: “Sua concepção da mulher como
fecal estimulara enormemente a sua inveja do pênis, já que o
pênis vigorosamente ereto era o antônimo das fezes mortas,
inertes”.

10. HUMANOS TOTAIS E HUMANOS PARCIAIS
É simplesmente o seguinte: de que adianta falar de “desfrutar
a nossa plena humanidade”, - como insiste Maslow,
acompanhado de tantos outros – se a “plena humanidade”
significa o desajuste primário em relação ao mundo? Se você se
livrar de sua couraça neurótica de quatro camadas, a armadura
que cobre a mentira caracterológica sobre a vida, como poderá
falar de “desfrutar” essa vitória de Pirro? A pessoa abre mão
de algo restritivo e ilusório, é verdade, mas apenas para se ver
face a face com algo ainda mais horrível: o desespero
autêntico. Plena humanidade significa pleno medo e pleno
tremor, pelo menos uma parte das horas em que o indivíduo
está acordado. Quando você faz com que uma pessoa surja
para a vida, longe de suas dependências, de sua segurança
automática, obtida ao abrigo do poder de outrem, que alegria
poderá prometer a essa pessoa, portadora do fardo de sua
solidão?

11. O tormento de Kierkegaard era o resultado direto de ver o
mundo tal como é na realidade em relação à sua situação
como criatura. A prisão do caráter da pessoa é
trabalhosamente construída para negar uma coisa, e apenas
uma coisa: a sua condição de criatura. Isso é o terror. Uma
vez admitido que é uma criatura que defeca, você convida o
oceano primitivo da angústia animal a desaguar sobre você.
Mas isso é mais que do que angústia da criatura, é também a
angústia do homem, a angústia que resulta do paradoxo
humano de que o homem é um animal cônscio de sua
limitação animal. A angústia é o resultado da percepção da
verdade de nossa condição. O que significa ser um animal
consciente de si mesmo? A idéia é absurda, se não for
monstruosa. Significa saber que se é alimento para os vermes.
Este é o terror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência
de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante
ânsia íntima pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de
tudo isso, morrer. Parece uma mistificação, que é o motivo
pelo qual certo tipo de homem cultural se rebela abertamente
contra a idéia de Deus. Que tipo de divindade iria criar um
alimento para vermes tão complexo e caprichoso? Divindades
cínicas, diziam os gregos, divindades que usam os tormentos
do homem para se divertirem.

12. Aquele que é educado pelo pavor (angústia) é educado pela
possibilidade (...) Quando essa pessoa, portanto, sai da escola
da possibilidade e sabe, com uma perfeição maior do que
aquela com que uma criança sabe o alfabeto, que não exige da
vida absolutamente nada e que o terror, a perdição e o
aniquilamento são vizinhos de todos os homens, e aprendeu a
lucrativa lição que cada terror que cause alarme poderá, no
momento seguinte, tornar-se uma realidade, irá interpretar a
realidade de maneira diferente. (...)

13. a vida é dura.


domingo, 6 de janeiro de 2008

Outros Palimpsestos (O Amor Duplo)


OUTROS PALIMPSESTOS



Inventei umas asas para voar, e vôo.
Enxofre e rosa em meus lábios
.

Chuva de flechas e violinos.

Tarde-caída arroxeada e enlutada na praia,
os meus olhos ainda claros mirando serenos.

Noite. Insuportável de me ver. Olhos profundos
e selváticos, pêlos eriçados e um rugido n´alma.

O que me fascina é este espírito livre de lobo.
E nos madrigais cintilo coberto de sangue das caçadas.

Chuva de orvalhos e uivos. Pavor.

Carne aberta e quente, vulvas úmidas e olorosas,
azulidades e sombras, amor às duas amantes morenas.

E um rastro de límpido rio guarda as cavernas
rubro-róseas das voracidades gementes das feras.

No meu coração mora um sol morto. E um cavalo
sem ginete que me espera nas verdes tranças.

Enredado de recifes também lobo do mar eu sou,
triste em vão, às vezes mergulhado de estrelas.

E quando saem as duas pombas negras a cravarem-se
no meu peito, nunca me acham, nunca me têm.

E nesta taça brindada de cismas, que os cílios do bosque
são-me cúmplices, estraçalho os seus nus pescoços.

Àquela que se ergue com suas grandes tetas escuras
e a que mostra o caminho de pérola da nuca ao ventre.

Chuva sem vontade. Sem dor nem orquestra. Alheia.

E o que me persegue são borboletas malhadas de fogos,
minha eterna solidão de mar e lobo. Rosa e enxofre nos lábios.


__________________________________________



SERMO



Do que recrudesce da grama
úmida. morta.

Um cão azul lambe
o grosso filete
que inunda a visão dos umbrais.

Eu nunca-nascido-de-mim
com as chamas púrpuras em túmulos
doridos, ancião.

Eu senti o corte da lâmina anterior
a fronte se ergueu da seiva
de sangue da árvore agonizante.

Dintéis de ferro adormecidos
de pálpebras. As mãos desnudas
escorrendo pelo bosque violento
da cabeleira. Uma palavra metralhada
sem amor, arrancada da fina boca.

A asa molhada o sol esvoaçante
recolheram-se dentro da pelepenumbra
espessas grades até onde o coração
percebe, e treme. Apoiado nos joelhos
polimeria trovões eu-menino-desterrado

alquimista. vivo.
(Anderson Dantas, in O Amor Duplo e o desespero das águas, inédito)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Bertolt Brecht: combativo!



AOS QUE HESITAM



Você diz:
Nossa causa vai mal.
A escuridão aumenta. As forças diminuem.
Agora, depois que trabalhamos por tanto tempo
Estamos em situação pior que no início.

Mas o inimigo está aí, mais forte do que nunca.
Sua força parece ter crescido. Ficou com aparência de invencível.
Mas nós cometemos erros, não há como negar.
Nosso número se reduz. Nossas palavras de ordem
Estão em desordem. O inimigo
Distorceu muitas de nossas palavras
Até ficarem irreconhecíveis.

Daquilo que dissemos, o que é agora falso:
Tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda? Somos o que restou, lançados fora
Da corrente viva? Ficaremos para trás
Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?

Precisamos ter sorte?

Isto você pergunta. Não espere
Nenhuma resposta senão a sua.




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A QUEIMA DE LIVROS



Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!




(Bertolt Brecht, tradução de Paulo César de Souza)

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

e.e. cummings: o mais vivo de todos nós





o ódio sopra uma bolha de desespero na
vastidão do sistema do mundo do universo e explode
- o medo enterra um amanhã sob o desgosto
e o ontem chega mais verde e jovem

o prazer e a dor são apenas aparências
(um a si se mostrando,a si se escondendo outro)
o único e verdadeiro valor da vida nenhum é
o amor faz a pequena diferença das coisas

e se aqui vier um homem para receber da senhora morte
o agora sem nunca e a primavera sem inverno?
ela tecerá esse espírito com os seus próprios dedos
e dar-lhe-á nada(se ele não cantar)

como há tanto mais do que o suficiente para nós os dois
querida. E se eu cantar tu és a minha voz,



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da mentira do não
ergue-se a verdade do sim
(apenas ela e quem
ilimitavelmente é)

fazendo os loucos compreender
(como um invernoso eu)que todos
os afazeres da mente não
se comparam a uma violeta



(e.e. cummings, tradução de Cecília Rego Pinheiro)





29


por que haverá de em cada de um parque

ânus se erguer alguma aspas estátua aspas para
provar que um herói é igual a qualquer basbaque
que teve medo de ousar responder “não?”

aspas cidadãos aspas poderiam em vez dis
so esquecer (errar é humano; perdoar,
divino)que se aspas o estado aspas diz
“mate” matar é um ato de amor cristão.

“Nada”, em 1944 D C

“pode se contrapor ao argumento da ne
cessidade militar” (generalíssimo e)
e o eco responde “não há defesa

contra a razão” (freud) – a gente paga a despesa
mas não abre a boca. A liberdade não é uma beleza?




(e.e. cummings, tradução de augusto de campos)

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