domingo, 13 de outubro de 2013
AINDA CAI A CHUVA
AINDA CAI A CHUVA
(Bombardeio aéreo, 1940. Noite e alvorecer)
Ainda cai a chuva
Sombria como o mundo do homem, negra como a
[nossa perdição ...
Cega como os 194 pregos
Batidos na Cruz.
Ainda cai a chuva
Com som igual ao do coração transformado
na batida do martelo
Fora do Campo Santo e os ímpios passaram ouvidos
No Túmulo:
Ainda cai a chuva
No Campo de Sangue onde as pequenas esperanças
se multiplicam e o cérebro humano
Alimenta sua ambição de verme com a cara de Caim.
Ainda cai a chuva
Aos pés do Homem Agonizante pendurado na Cruz.
Cristo cada dia, cada noite, pregado lá, tem
[misericórdia de nós
De Dives e de Lázaro:
Debaixo de chuva a ferida e o ouro são um só.
Ainda cai a huva
Escorre o sangue do lado alanceado do Homem
[Desfalecido:
Ele carrega em Seu Coração todas as feridas - aquelas
[da luz extinta
A última faísca esmaecida
No próprio assassinado coração, as feridas da triste e
[inacessível escuridão.
Nas feridas do urso acossado, - o cego e gemente urso
açoitado pelos guardas na sua desamparada carne
As lágrimas da lebre perseguida.
Ainda cai a chuva
Por isto saltarei para Deus
Que me abate -
Olha, olha como o sangue de Cristo jorra no
[firmamento:
Flui do semblante profundo que pregamos na árvore
Até o sedento coração morrer aprisionando os fogos
[do mundo
Escura mancha com aflição
Como a coroa laurel de Cesar
Então a voz de alguém soa semelhante
À do coração do homem que foi outrora
Uma criança no convívio dos brutos
Ainda amo, ainda verto minha inocente luz
E meu sangue para ti.
(Edith Sitwell, tradução de C. Ronald)
sexta-feira, 12 de julho de 2013
Poesias Nunca: CAIO FERNANDO ABREU
CURTUME
Nenhum poema libertário
libera a tarde do gigantesco inútil
derramado em copos de cinza
sobre as paredes sujas.
Nenhum poema inflamado
desinflamaria o pus da paisagem mutilada
pelas chaminés vomitando fuligem
sem parar.
Nenhum poema possível
possibilita a transmutação do nada
curvado sobre cada uma das máquinas
em toques secos.
Nenhum poema pirado
pararia a voragem estúpida
gerando monstros coloridos
em papel couché.
Nenhum poema solto
soltaria outra vez as pandorgas perdidas.
Preso na gaveta, solto no vento: nenhum poema.
Nem mesmo este.
Caio Fernando Abreu, Poesias Nunca Publicadas
quinta-feira, 13 de junho de 2013
A Repetição do Silêncio: PAUL AUSTER
NOITES BRANCAS
Ninguém aqui,
e o corpo diz: tudo que se diga
não se deve dizer. Mas ninguém
também é corpo, e o que diz o corpo
também escuta
além de ti.
Neve e noite. A iteração
de um assassinato
entre as árvores. A pena
corre pela terra: não sabe mais
o que há de ser, e a mão que a sustém
sumiu.
Mesmo assim, escreve.
Escreve: no começo,
entre as árvores, um corpo vem andando
da noite. Escreve:
o branco do corpo
é da cor da terra. É a terra,
e a terra escreve: tudo
é da cor do silêncio.
Não estou mais aqui. Jamais disse
o que dizes
que disse. E, no entanto, o corpo é um lugar
onde nada morre. E a noite toda
dentre o silêncio das árvores, tu sabes
que minha voz
vem andando para ti.
(Paul Auster, 1971-1975, tradução Caetano W. Galindo)
sexta-feira, 15 de março de 2013
O AMOR DUPLO E O DESESPERO DAS ÁGUAS
LUNAR
Teu olho de lua
raiado de sombras.
Tua nádega branca
aureolada de lírios.
Teu beijo frio
pupila de neve.
Tua fala de harpa
mistério órfico.
Teu luzeiro verde
caracol de esmeralda.
Tua alma pesada
afugentada de estanho.
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TRIÂNGULO
Vem. e me acompanha pela torva janela
como
um rastro sibilante e tépida correntude
carnosos
lábios que exsudam perfeita simetria
Como
as distâncias e as tatuagens ardentes de carne
que
peleiam aportam cais tremescurecidos de dentro
e
encontro ângulo ferido de si pela manhã cinzazul
Tristes
moendas que o chão varre horas afora
silencio
meus olhos na adaga do número e no gozo
das
chuvas bebem-se as joias da embriaguez
Tudo
tamanho de tato. Tateio a teia, a tirana
tigresa
que
sobe. As colinas da pele o caminho de sangue
nas
unhas as encostas da alma uma tessitura de anjos
Movem-se
as asas das águas. Elas ferem o ângulo
que ri
amor
marejado de temporais antes naufrágio
todo de mim
pelos
campônios amarelecidos em que barro e palha morrem o canto
Tive
tanto medo.
tanto.
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IBIZA
Três vezes açambarcante
ao ruído negro
do meu centro.
do peito
da cabeça
do sexo.
com um xale escondida
as feições antigas
as farpas embaraçadas.
três vezes revivestes
no silêncio todo
de meu sangue e rumor.
enterrada a carne no rio
a boca todos os buracos
sangrantes que fugi.
estupro molhante onda
música encarnada vasculhante
de mim
de ti das vagas frias
ferrugem a miséria da casa
as tábuas frouxas do sorriso
a tristeza do veneno na boca do pai.
viestes de novo a viver, fúlgida
água, rugas descidas das Dunas
e a mover meu tempo de menino e peixe.
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ESTRIDOR
Vencido. Em volteios, vivo
e ao centro sempre
disposto
dos velames em ventos
vertido.
Pulsante. Eu-próprio, morto
nos flancos
disperso, ignaro
dos sexos em lençóis
amantíssimo.
Vertigem. Vasculhamos portos
encontramos moscas,
mansardas
moles mamas, mitigando
fósforos.
Obus. Homem, registro tardio
das palavras e do régio
tanque
fogo, guerra e arte
rubra do dorso.
Descanso. Fera alma arremessada
de dentro, este túnel que nunca
cavamos, este lábio que
nunca mel
E nas mãos mádidas maciez imersa,
vê o mal. Madrepérola.
Nácar.
toca-me o centro, a
friez da fronte.
Sentes. Em meio às coxas pendentes
frescos mexilhões, a idade do Tempo
em que jorra um céu puro
e deleitoso
A concha retida, o vôo da fênix o mar
as gaivotas
vulcanizadas, a flama do ar
no centro do Ser, flores,
onde serpeia o gozo.
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SOLAR
Teu olho de sol
lançado
de luzes.
Teu
ventre dourado
alcantilado
de peixes.
Tua
língua quente
ardência
da lava.
Tua
música auriterra
revelação
do Zoroastro.
Teu
Templo de chamas
asas
marteladas do céu.
Tua
alma leve
alquimia
dos anjos.
(Anderson Dantas, do
livro inédito O Amor duplo e o Desespero das Águas
Imagem: do filme Bela
Donna de Fábio Barreto)
terça-feira, 5 de março de 2013
ANJO
ANJO
(2ª. versão)
As esculturas perderam-se na
superfície da pele e das águas que não mergulharam com suas ágeis graças.
Revisitado de cinzas que o fogo nem ardeu, pois a ausência é a verdade daqueles
sinceros espíritos cinzelados de puro desejo.
No teatro daquelas tristezas e antigas
alegrias o vento foi o branco algodão das têmporas que avançavam exauridas, ou
a falta da cabeleira que o orgulho consumiu na juventude abrasadora.
Permaneço de pé, no abismo de meu
fundo negror, tal como um grande pássaro que ostenta asas soporíferas e uma
umidade de sangue na ponta dos lábios ou bico a estraçalhar a presa, a suposta
amada que languescente desaba do degrau de seu desprezo alaranjado.
Sem cor! Retrato da dor às minhas mãos
amaldiçoado, sem seu corpo ou maciez, sem nudez às escarpas lançado para morrer
sem flautas, sem música, no vermelho do choro e na mandíbula da incerteza. Foi
quando aturdido o atirador de facas me convidou para no circo rolar sobre as feridas, a passear no
luar das geladas angústias e do poema rasgado na véspera dos dissabores.
E eu não pus nenhuma máscara e eu ria
sobre meu próprio túmulo que apodrecia dentro de mim. E na hora que Satã soprou
seu vômito negro, eu estava de saída para encontrar Aurora e ela me puxou para
si, com uma ânsia aterradora, e me beijou as axilas e cheirou minha alma de
sete facas e eu vi-me ao longo do oceano, só, com um peixe cru recitando versos
de um Teatro Perdido, e ele me jogou uma rosa de espuma e um riso de sal; daí
já era tarde para encontrar Pandora e então mais uma vez eu morri. Raiado de
espinhos eu subi. Ao monte. E nunca
acordado despi lentamente a bainha de meu jorro. Foi quando pela lateral da
galeria meu olho ficou a ver navios por cima dos marinheiros. Parti no dia
seguinte e nunca mais a vi, eu ainda lembro da primeira vez que ela confiou na
minha força; mesmo forte é meu desespero e minha travessia que desarruma pelos
vastos campos o diário dos homens, dos bois e das aves amigas.
Em verdade, somos um Teatro que falta
zarpar junto com a fome dos tubarões e livres para o vôo dos albatrozes. Lá de cima eu fui. Lá embaixo no inferno que suporto. Lá discípulo de sempre. Anjo.
(Anderson
Dantas – prosa do livro inédito Cavalos do Inferno
Foto:
do filme La Fille Sur Le Pont, 1999)
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
ALMA BEAT: Kenneth Rexroth
AS VANTAGENS DA INSTRUÇÃO
Sou um homem sem ambições,
de poucos amigos, totalmente incapaz
de ganhar minha vida ou ficar mais moço,
fugindo de uma sentença justa qualquer.
Solitário, mal vestido, que importa?
À meia-noite eu faço para mim uma jarra
de vinho branco quente com sementes de cardamomo,
com a boina velha e um roupão cinza rasgado,
sento no frio escrevendo poesias,
rabiscando nas margens nus angustiados,
copulando com as gatinhas
ninfomaníacas da minha imaginação.
(tradução de Leonardo Fróes, 2003)
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