Em 1937, Cioran chega a Paris para fazer uma tese sobre Nietzsche que jamais concluiu, e passa dez anos escrevendo em romeno sem publicar nada. Decidido a mudar de língua, submete - em 1947 - à editora Gallimard o manuscrito de "Breviário de decomposição", que é aceito. No entanto, ele o reescreve quatro vezes, tentando vingar-se da observação de um de seus amigos franceses: "você escreve em um francês de meteco". Em 1951, o livro recebe o prestigioso prêmio Rivarol e, alguns anos depois, Saint-John Perse saúda Cioran como "o maior dos prosadores da língua francesa desde Valéry".
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SOBRE CERTAS SOLIDÕES
Há corações que Deus não poderia contemplar sem perder sua inocência. A tristeza aquém da criação: se o Criador houvesse penetrado antes no mundo teria comprometido seu equilíbrio. Quem crê que ainda pode morrer não conheceu certas solidões, nem o inevitável da imortalidade percebida em certas angústias ...A sorte dos modernos é haver localizado o inferno em nós: se tivéssemos conservado sua figura antiga, o medo, sustentado por dois mil anos de ameaças, nos teria petrificado. Não há pavores que não estejam transpostos para o subjetivo: a psicologia é nossa salvação, nosso subterfúgio. Antigamente, pensou-se que este mundo havia surgido de um bocejo do diabo: hoje, só é erro dos sentidos, preconceito do espírito, vício do sentimento. Sabemos a que nos ater ante a visão do Juízo Final de Santa Hildegarda ou ante a do inferno de Santa Teresa: o sublime - seja o do horror ou o do da elevação - está classificado em qualquer tratado de doenças mentais. E embora nossos males nos sejam conhecidos, nem por isso estamos livres de visões, mas já cremos nelas. Versados na química dos mistérios, explicamos tudo até nossas lágrimas. Algo permanece, porém, inexplicável: se a alma é tão pouca coisa, de onde vem nosso sentimento de solidão? Que espaço ocupa? E como substitui, subitamente, a imensa realidade desvanecida?
(texto de Breviário de Decomposição)