sábado, 11 de dezembro de 2010
GULLAR e a perplexidade da finitude
PERPLEXIDADES
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais entranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
do que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado
(Ferreira Gullar, Em alguma parte alguma)
sábado, 17 de julho de 2010
A HORA DOS ASSASSINOS
Que retrato perfeito de nossos prezados governos! Sempre à procura de um ponto de apoio para conquistar em lugar atroz, sempre apegados a seus ganhos ilícitos, defendendo seus bens, suas colônias, com o exército e a marinha. Para os mais graúdos, o mundo não é suficientemente amplo. Para os pequenos que precisam de espaço, palavras piedosas e ameaças veladas. A terra pertence aos fortes, aos que dispõem dos maiores exércitos e marinhas, aos que brandem o grande porrete econômico. Como é irônico que o poeta solitário que fugiu para o fim do mundo com o propósito de juntar umas parcas economias tivesse que assistir de braços cruzados as grandes potências transformando na maior mixórdia todos os seus sonhos.
“Sim o fim do mundo ... avançar, avançar sempre! Agora começa a grande aventura ... “ Mas, por mais depressa que se avance, o governo sempre chega primeiro, com restrições, com grilhões e algemas, com gases venenosos, tanques e bombas sufocantes. Rimbaud, o poeta, se propõe a ensinar o Alcorão aos meninos e meninas hararis na própria língua deles. O governo preferiria vendê-los como escravos. “Tem alguma destruição que é necessária”, escreveu certa vez, e quanta poeira se levantou por causa dessa simples declaração! Referia-se apenas à destruição intrínseca à criação. Os governos, porém destroem sem a menor justificativa e certamente sem jamais pensar em criação. O que o Rimbaud poeta queria era acabar com as formas velhas, tanto na vida como na literatura. O que os governos querem é preservar a ordem estabelecida, por mais chacina e destruição que isso acarrete.
(...) quando se trata de examinar as atividades de seus prezados governos, sobretudo em relação àquelas intrigas escusas contra as quais Rimbaud se insurgia, desmancham-se em elogios e bajulações. Quando querem puni-lo como aventureiro, falam do grande poeta que foi; quando querem limitá-lo à condição de poeta, falam de seu caos e rebeldia. Mostram-se consternados quando o poeta imita os espoliadores e aproveitadores que adulam e ficam horrorizados quando não tem interesse por dinheiro ou pela vida monótona e tediosa do comum dos mortais.
(Henry Miller, A hora dos assassinos – um estudo sobre Rimbaud)
sábado, 10 de julho de 2010
AGORA TEMPO DE AMOR PARA KADOSH
Tríplice Acrobata, agora virá um tempo de amor para Kadosh, um vívido tempo para compensar o meu de antes desviado, singradura agora para compensar outro tempo onde o casco só caminhava por caminho ardoso, onde Kadosh sedento procurava tua cara, procurava em tudo, até na corcova do que ia à frente, na sombra do capim-secura que ficava atrás, e até nas carnes onde Kadosh montava, carne de amiga, de inimiga, de muitas mal queridas, e até na pequena noz, núcula feito goma, nucela escondida de mulher, até aí te procurava porque nunca se sabe do gosto embuçado do divino,
Eu Shiva-Kadosh, a linha da cabeça imensa sumindo no dorso da mão, a ossatura perfeita, a apreciável clareza das perguntas, e a raça!aroma-amora, baba-doçura no sangue de outras raças, tudo isso te dei, e enquanto me ofertava ouvia dizer que muito longe de mim, um, de deficiente biografia, levitava sobre as cumeadas.Basta. Tempo de amor, o meu, agora, Cão de Pedra. Que eu viva carne e grandeza.E principalmente isso: que eu Te esqueça. Mais Nada.
(Hilda Hilst, in Kadosh)
sexta-feira, 25 de junho de 2010
XXIII
XXIII
A Marcos Emílio, in memoriam.
Porque conheço dos humanos
Cara, Crueza,
Te batizo Ventura
Rosto de ninguém
Morte-Ventura
Quando é que vem?
Porque viver na Terra
É sangrar sem conhecer
Te batizo Prisma. Púrpura
Rosto de ninguém
Ungüento
Duna
Quando é que vem?
Porque o corpo
É tão mais vivo quanto morto
Te batizo Riso
Rosto de ninguém
Sonido
Altura
Quando é que vem?
(Hilda Hilst, da morte. odes mínimas)
quarta-feira, 21 de abril de 2010
(DESDE O TEMPO EM QUE ENCONTRAMOS A LUZ)
(DESDE O TEMPO EM QUE ENCONTRAMOS A LUZ)
“escorre do charco da rocha
e agora descem com luzes à água
lanternas de remadores flutuam
a garra do mar as repele
jatos de água da rocha”
As bolhas rebentam em minhas mãos de mendigo.
Foi quando me prostituí nas ruas de Sodoma.
Eu me sinto só. no gelo que desce destas galerias escuras.
Fui carrasco nos tempos de artilharias e forcas. De serpes azuis.
Nas areias da consciência. nas batalhas da pátria morta.
A casa é um viveiro de aranhas. a cama um sineiro de putas.
Não só o silêncio se arrasta são pesadas as cortinas da sombra
o meu pescoço é um rio cortado de veias,
a cabeça desfaz-se num círculo de pássaros mudos de prata
Na altura das estrelas eu encontrei uma concha que ria do meu desespero
só o desespero das águas – ela me dizia – é o teu fértil e agudo e certo
arrepio de vida onde resgatas mais que uma maçã podre e uma criança
amorosa de leite e sumo-furtado; saberás roer teus medos na hora austera
agora que estás preparado de sangue e lodo, garimpeiro de álveos;
os mesmos que soprastes antes junto com Satã
- agora ele acende na fundura
não saberei decifrar mais uma esfinge travestida de nácar
“dois rios juntos peixe brilhante e sargaços
uma ninfa solitária na lagoa.”
Agora sou eu que perfuro no mergulho o saber que me dói de alma.
(Anderson Dantas – O Amor Duplo e o Desespero das Águas – inédito
Foto: auto-retrato)
sábado, 10 de abril de 2010
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
uma casa na estação
uma casa na estação
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(a hora do homem é a tapera dos ausentes)
aqui
no verão rubro
do peito
aqui
na chuva funda
que cintila
na pupila
e a alegria
infantil
que enche
os campos abertos
as ruínas
da casa
e dos lábios
que murmuram estórias
o olho azul
coleante
doce e severo
que geme nos eucaliptos
descaminhos
que dilaceram
tua perna
trilhos
enquanto sombras
fantasmas estalam
encilham
os cavalos
e desvelam os cães
de nossas
memórias mortas
(aqui
no verão fundo
de nossas chamas)
(Bagé (RS), 13 – 17/02/2010)
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
A LOUCURA, e seu gorro com guizos
Elogio da Loucura
(trecho)
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Não espero votos; não me enfureço; não reclamo oferendas expiatórias por um detalhe omitido num rito. Não revolto céus e terras, se convidaram os outros deuses, deixando-os em casa ou se não me deixam farejar o cheiro das vítimas. É tamanha a exigência das divindades neste ponto, que é mais vantajoso e seguro negligenciá-las do que servi-las; assim como existem homens de gênio tão ruim e tão fáceis de irritar que seria melhor ignorá-los completamente do que os ter como amigos.
Mas ninguém, dizem, oferece sacrifícios à Loucura, nem lhe ergue templos. Exato, e essa ingratidão, já vos disse, muito me surpreende; mas sou indulgente e levo as coisas pelo lado bom. Nem mesmo ligo para isso. Por que me importaria com um pouco de incenso ou um punhado de farinha sagrada, com um bode ou uma porca, quando em todos os lugares onde existem homens obtenho um culto que até os teólogos consideram excelente? Porventura, precisaria eu sentir ciúmes de Diana porque a reverenciam com sangue humano? Eu, de minha parte, acho-me perfeitamente servida por todos e em todos os lugares, quando os corações me possuem, os costumes me refletem e a vida é a minha imagem.
Este modo particular de um culto não é freqüente entre os cristãos. A maioria apresenta à Virgem, mãe de Deus, uma pequena vela em pleno dia, que não lhe serve para nada. Mas como são poucos os que se esforçam em imitar suas virtudes, a castidade, a modéstia, o amor das coisas divinas! Este é, entretanto, o verdadeiro culto, muito mais agradável aos habitantes do Céu. Por que ademais, iria eu desejar um templo, dispondo do mais belo de todos, já que tenho o universo?
Só eu, a Loucura, e mais ninguém, estou sempre pronta para distribuir indistintamente favores para todos os homens.
(Elogio da Loucura, Erasmo de Rotterdam, tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira para a tradução de Pierre Noillac.
Imagem: desenho de Holbein)
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
BATAILLE MALDITO: o ateu místico
A confissão de Simone
e a missa de Sir Edmond
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(trechos)
Não é difícil imaginar o meu espanto. Simone atrás da cortina, ajoelhou-se. Enquanto ela cochichava, eu aguardava com impaciência os efeitos dessa travessura. O ser sórdido, cismava eu, pularia para fora de sua caixa, precipitando-se sobre a sacrílega. Nada de semelhante aconteceu. Simone falava baixinho, sem parar, diante da janelinha gradeada.
Avancei nas pontas dos pés.
Simone realmente se masturbava, colada entre as grades, o corpo tenso, as coxas afastadas, os dedos remexendo os pentelhos. Consegui tocá-la, minha mão alcançou o buraco entre as nádegas. Nesse momento, ouvi-a claramente pronunciar:
- Padre, ainda não disse o pior.
Seguiu-se um silêncio.
- O pior, padre, é que estou me masturbando enquanto falo com o senhor.
Mais alguns segundos, agora de cochichos. Finalmente, quase em voz alta:
Se não acredita, posso lhe mostrar.
E Simone se levantou, abrindo-se diante do olho da guarita, masturbando-se em êxtase, com a mão segura e rápida.
- E então, padreco – berrou Simone golpeando violentamente o armário - , o que você está fazendo no seu barraco? Batendo punheta também?
Mas o confessionário permanecia mudo.
- Então, eu vou abrir!
Lá dentro, o visionário sentado, de cabeça baixa, enxugava a testa encharcada de suor. A moça apalpou a batina: ele não reagiu. Ela arregaçou a imunda saia preta e tirou para fora um pau comprido, rosado e duro: ele se limitou a inclinar a cabeça para trás, com um trejeito e um zunido entre os dentes. Deixou Simone agir, e esta meteu a verga bestial na boca.
Sir Edmond e eu tínhamos ficado imóveis de espanto. O assombro me paralisava. Eu não sabia o que fazer, quando o enigmático inglês se aproximou. Afastou Simone com delicadeza. Depois, segurou o verme pelo pulso, arrancou-o para fora do buraco e o estendeu nas lajes, a nossos pés: o desprezível sujeito jazia feito morto pelo chão e a baba lhe escorria pela boca. O inglês e eu o transportamos, nos braços, para a sacristia.
De braguilha aberta, pau murcho, o rosto lívido, ele não ofereceu resistência, respirando com dificuldade; nós o jogamos numa poltrona de forma arquitetural.
- Señores – proferiu o miserável - , vocês acham que sou um hipócrita!
- Não – disse Sir Edmond, num tom categórico.
Simone perguntou-lhe:
- Como é o seu nome?
- Don Aminado – respondeu.
Simone esbofeteou a carcaça sacerdotal. Com o golpe, a carcaça enrijeceu novamente. Ele foi despido; Simone, de cócoras sobre as roupas jogadas no chão, mijou feito uma cadela. Em seguida, Simone masturbou o padre e o chupou. Eu enrabei Simone.
Passados alguns minutos, o inglês voltou à sala, trazendo consigo um cibório decorado com anjinhos nus como cupidos.
Don Aminado contemplava fixamente aquele recipiente de Deus colocado no chão; o seu belo rosto idiota, contorcido pelas mordidas com que Simone lhe excitava o pau, expressava um desvario absoluto.
O inglês tinha trancado a porta. Vasculhando os armários, encontrou um cálice grande. Pediu-nos que abandonássemos o miserável por uns instantes.
- Você está vendo – disse a Simone – estas hóstias no cibório e agora este cálice onde se coloca o vinho.
- Cheira a porra – disse ela, farejando os pães ázimos.
- Justamente – continuou o inglês - , estas hóstias que você está vendo são o esperma de Cristo transformado em bolinhos. E o vinho, os eclesiásticos dizem que é o sangue. Enganam-nos. Se fosse realmente o sangue, eles beberiam vinho tinto, mas só bebem vinho branco, porque sabem perfeitamente que se trata de urina.
A demonstração era convincente. Simone agarrou o cálice e eu me apoderei do cibório: Don Aminado na sua poltrona, foi percorrido por um ligeiro tremor.
Simone começou por lhe aplicar uma grande pancada na cabeça, com a base do cálice, que o excitou mas acabou de bestializá-lo. Chupou-o de novo. Ele emitiu gemidos desprezíveis. Ela o levou aos limites da fúria dos sentidos e então:
- Isso não é tudo – disse - , é preciso mijar.
Deu-lhe outra bofetada.
Despiu-se na frente dele e eu a masturbei.
O olhar do inglês estava tão duro, cravado nos olhos do jovem bestializado, que a coisa aconteceu sem dificuldade. Don Aminado encheu ruidosamente de urina o cálice que Simone mantinha sob seu cacete.
- E agora, beba – disse Sir Edmond.
O miserável bebeu num êxtase imundo.
Simone chupou-o de novo; ele urrou tragicamente de prazer. Com um gesto demente, atirou o penico sagrado, que rachou contra a parede. Quatro braços robustos o agarraram e, de pernas abertas, corpo quebrado, berrando como um porco, cuspiu sua porra nas hóstias do cibório que Simone segurava sob ele enquanto o masturbava.
(Georges Bataille, Histoire de l´oeil)
domingo, 3 de janeiro de 2010
o que eles querem
Vallejo escrevendo sobre
solidão enquanto morria de
fome;
a orelha de Van Gogh rejeitada por uma
puta;
Rimbaud correndo para a África
em busca de ouro e encontrando
um caso incurável de sífilis;
Beethoven ficou surdo;
Pound foi arrastado pelas ruas
numa gaiola;
Chatterton tomou veneno para rato;
o cérebro de Hemingway pingando dentro
do suco de laranja;
Pascal cortando os pulsos na banheira;
Artaud trancado com os loucos;
Dostoiévski de pé contra um muro;
Crane pulando na hélice de um barco;
Lorca baleado na estrada pelo exército
espanhol;
Berryman pulando de uma ponte;
Burroughs atirando na mulher;
Mailer esfaqueando a sua;
- é isso o que eles querem:
o danado dum show
uma placa luminosa
no meio do inferno.
é isso o que eles querem,
aquele bando de
estúpidos
inarticulados
tranqüilos
seguros
admiradores de
carnavais.
(Bukowski, tradução de Pedro Gonzaga)
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