segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Ave Lúcifer



ave, lúcifer

as maçãs
envolvem os corpos nus
nesse rio que corre
em veias mansas dentro de mim

anjos e arcanjos
não pousam neste éden infernal
e a flecha do selvagem
matou mil aves no ar

quieta, a serpente se enrola
nos seus pés
é lúcifer da floresta
que tenta me abraçar

vem amor
que um paraíso
num abraço amigo
sorrirá para nós sem ninguém nos ver

prometa
meu amor macio
como uma flor cheia de mel
pra te embriagar, sem ninguém nos ver

tragam uvas negras
tragam festas e flores
tragam copos e dores
tragam incensos odores

mas, tragam lúcifer pra mim
em uma bandeja pra mim

sábado, 29 de agosto de 2009

Inferno: STRINDBERG


VII
TRECHOS DE MEU DIÁRIO
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Leio um delicioso panfleto, A alegria de morrer, que me dá o desejo de deixar este mundo. Para explorar a fronteira entre a vida e a morte, deito-me na cama, destapo o frasco de cianureto de potássio, que desprende seu odor mortal. Ei-lo que se aproxima de mim, o homem da foice: é delicado e tem ares voluptuosos; mas, no último instante, sempre chega alguém ou acontece alguma coisa de imprevisto: o garçom do hotel sob um pretexto qualquer, uma vespa que entra pela janela.
As potências recusam-me a única alegria, e submeto-me diante de sua vontade.

Nos começos de Julho, o hotel se esvazia com os estudantes que partem em férias.
Eis por que a chegada de um estrangeiro, no quarto vizinho, excita-me a curiosidade. O desconhecido não fala nunca; parece sempre ocupado em escrever, por trás da divisória que nos separa. Numa atitude estranha, recua todas as vezes que eu aproximo minha cadeira da parede; repete meus movimentos, como se quisesse me irritar com isso.
A coisa continua por três dias. Depois, percebo que, quando vou me deitar, alguém se deita no quarto que está do lado de minha mesa; mas, estando deitado, ouço-o levantar-se e ir para o outro quarto, ocupando o leito vizinho do meu. Escuto-o estendido paralelamente a mim: folheia um livro, depois apaga a lâmpada, respira, vira de lado e dorme.
Um silêncio absoluto reina no quarto do lado oposto. Logo, ele ocupa ambos os quartos. É desagradável ser assediado pelos dois lados.

Só, inteiramente só, janto com o prato trazido numa bandeja a meu quarto, e como tão pouco que o garçom se compadece de mim. Há uma semana que não ouço minha própria voz, e, por falta de exercício, o som começa a desaparecer. Estou inteiramente sem dinheiro: fazem-me falta os cigarros e os selos postais.

Agora, sentado na poltrona, abro a Bíblia e leio ao acaso: “Não refletem nem consideram, nem têm o bom senso de dizer: Eu queimei no fogo metade desta madeira, e cozi pães sobre as brasas; cozi carnes e comi-as, e então de seu resto hei de fazer um ídolo? Hei de prostrar-me diante de uma árvore? Uma parte deste pau está já feita em cinza; sem embargo disso, o seu coração insensato adorou a outra parte, e ele não salvará a sua alma, dizendo: É sem dúvida uma mentira o que está na minha mão.
... Eis que diz o Senhor, que te remiu e que te formou no ventre da tua mãe: Eu sou o Senhor, que faço todas as coisas, que só por mim estendi os céus, e firmei a terra, sem que ninguém me ajudasse. Eu faço baldar os prognósticos dos adivinhos, e torno furiosos os agoureiros. Eu faço recuar os sábios, e converto sua ciência em loucura”.

(August Strindberg, Inferno)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Walt Whitman, fragmentos do mar e eu


XXII
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Tu mar! Também a ti me rendo – adivinho o teu sentido,
Da praia observo os teus dedos curvos e convidativos,
Creio que te recusas a regressar sem me seres em ti,
Devemos estar juntos algum tempo, dispo-me, leva-me depressa para longe
da terra,
Aconchega-me, suavemente, embala-me na tua sonolenta ondulação,
Bate-me com a tua amorosa água, posso retribuir-te.

Mar de grandes vagas espraiadas,
Mar de ampla e convulsiva respiração,
Mar do sal da vida e dos túmulos por cavar mas sempre abertos,
Mar que bramas e esculpes as tempestades, mar caprichoso e sublime
Fundo-me contigo, também sou de uma e de todas as fases.
Participante do fluxo e do refluxo sou, exalto o ódio e a reconciliação,
Glorifico os amantes e os que abraçados dormem.

Sou quem testemunha o amor ao próximo,
(Posso enumerar os objetos da casa e omitir a casa que os contém?)

Não sou apenas o poeta da bondade, reconheço que também sou
o poeta da maldade.

Que arrebatamento é este sobre a virtude e o vício?
O mal impele-me e impele-me o resgate do mal, permaneço indiferente,
O meu caminho não é o caminho de quem descobre nem de quem o recusa.
Rego as raízes de tudo o que cresce.



(Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

BORGES: Pampa e a Vida Inteira




AO HORIZONTE DE UM SUBÚRBIO
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Pampa:
Avisto tua amplidão que afunda os subúrbios,
estou me dessangrando em teus poentes.

Pampa:
Posso ouvir-te nas tenazes violas sentenciosas,
e nos altos bem-te-vis e no ruído cansado
dos carros de bois que vêm do verão.

Pampa:
O espaço de um pátio colorado me basta
para te sentir meu.

Pampa:
Eu sei que te cortam
trilha e atalhos e o vento que te muda.
Pampa sofrido e macho que estás nos céus,
não sei se és a morte. Sei que estás em meu peito.





MINHA VIDA INTEIRA
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Aqui outra vez, os lábios memoráveis, único e semelhante
a vós.
Persisti outra vez na aproximação da ventura e na intimidade
do sofrimento.
Cruzei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca, de uma hispânica quietude.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada
imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Acredito profundamente que isso é tudo e que não verei nem
farei coisas novas.
Acredito que minhas jornadas e minhas noites se igualam em
pobreza e riqueza aos de Deus e aos de todos os
homens.




(Jorge Luis Borges, Lua Defronte, 1925)

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