sábado, 28 de janeiro de 2012

Meus Melhores Fragmentos - Hilda Hilst (parte três)



















Enrodilhado. Capa.
E ao mesmo tempo
Úmida carapaça.
Enrodilhado

Silvando
À espera da graça.
À espera, Senhor
Da tua mordedura.

Perseguido
E perseguidor
Ando colado à terra.
Mas num salto, Senhor,
(a tua mão aberta
à minha espera)
Posso chegar ao alto.

Se me sei perseguido
Posso te amar, buscando.
Se não te sei comigo
(só sabendo longe)
Não saberia buscar
Esse que só se esconde.

Grande Perseguidor
Foge comigo.
E gozosos gozaremos
Uma única viagem.
O ouro de Kadosh
Se não te sabe amigo
Se esfarela nos ares.

O ouro de Kadosh
É ouro dividido.
(Porque se vem à minha mão
Antes de mim, é teu)
Grande Perseguidor
Me faz teu perseguido.

Sorver
Tua rutilante intimidade.
E Kadosh prisioneiro
Contente de seu cárcere.
Amar seu tempo derradeiro.
Kadosh, rútilo brilhante
Meeiro da tua linguagem.

Arder para a eternidade.
Kadosh, búzio-bandeira
Espiralada eloqüência
No topo da tua cidade.

Reinventar o Sem-Nome
Cem mil dias debruçado
No teu passo e travessia.

E ser
Muito mais do que o vento
À volta do teu segredo.
E ser muito mais do que o mar:

Ser inteiro chamamento
Ser convés e marinheiro.

Dentro de ti navegar.

Não ser livre. Repousar
Na tua garra
E madrugada certa de saber
Parte
De tua rara medula.

E não ser triste
Porque tua luz demora.
Ser quase o impossível:
Sobra clara, esquiva
Do mundo permissível
(Esse mundo de luto
Lucidez sem aurora
Lusfer e aparência
Sombra escura)

Ser de Kadosh contente.
Larva
Que a si mesmo se elabora.
E desejar tua asa
Teu sopro fremente, teu gozo

Se se fizer a hora.


(Hilda Hilst, Kadosh – 1973)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Meus Melhores Fragmentos - Hilda Hilst (parte dois)



















IV


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                                                        A Federico Garcia Lorca



Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
Quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
Pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
Que bebi da tua boca a fúria de umas águas
Eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
Porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE
E mais um tempo, nem será licito ao poeta ter memória
E cantar de repente: “os arados van e vên
                                      dende a Santiago a Belén”.
Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
A tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
Deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?
                                     “El passado se pone
                                     su coraza de hierro
                                     y tapa sus oídos
                                     con algodón del viento.
                                     Nunca podrá arrancársele
                                     un secreto.”
E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
De infância, o plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.


(Hilda Hilst, Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão – Poemas aos homens de nosso tempo – 1974)



XVII

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Os juncos afogados
Um cão ferido
As altas paliçadas
Devo achar a palavra
Companheira do grito.

Um risco n´água
Um pássaro aturdido
Entre o capim e a estrada

Um grande girassol
Explodindo entre as rodas

Imagens de mim
Na caminhada.



(Hilda Hilst, Cantares de Perda e Predileção – 1983)



I

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Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado

Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Pés burilados
Fino formão
Dedo alongado agarrando homens
Galáxias. Corpo de homem?
Não sei. Cuidado.

Vive do grito
De seus animais feridos
Vive do sangue
De poetas, de crianças

E do martírio de homens
Mulheres santas.

Temo que se aperceba
De umas misérias de mim
Ou de veladas grandezas.

Soberbas
De alguns neurônios que tenho
Tão ricos, tão carmesins.
Tem esfaimada fome
Do teu lado que lateja.

Se tenho a pedir, não peço.
Contente, eu mais lhe agradeço
Quanto maior a distância.
E só porisso uma dança, vezenquando
Se faz nos meus ossos velhos.

Cantando e dançando, digo:
Meu Deus, por tamanho esquecimento
Desta que sou, fiapo, da terra um cisco
Beijo-te pés e artelhos.

Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado

Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Cuidado.



(Hilda Hilst, Poemas Malditos, gozosos e devotos – 1984)

domingo, 15 de janeiro de 2012

Meus Melhores Fragmentos - Hilda Hilst (parte um)



















XII



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Dia doze ... e eu não suportarei
o estado normal das cousas.
O ano que vem, não vou desejar
Felicidades a ninguém.

Nem bom natal, nem boas entradas.

Meus amigos sabem de tudo o que eu sei.
E continuam a viver sem interrupção,
apressadamente como no ato de amor.
São doidos e não percebem que amanhã
Cristina não virá.
Que amanhã Cristina vai morrer
porque ama a vida.

Amanhã serei corajosamente Cristina
Eu, amando todos os que sofrem.
Eu ... essência.

Mas os meus amigos, coitados,
não percebem.
Fazem filhos nascer, fazem tragédia.
Não sabem que o amor não é amor
e a natureza é um mito.

Não sabem de nada os meus amigos.
E não vou explicar
porque podem ficar sentidos.
São puros, vão morrer como anjos.
Vão morrer sem nada saber
daqueles dias perdidos.

Vão morrer sem saber que estão morrendo.



(Hilda Hilst, Presságios – 1950)





I


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Eu cantarei os humildes
os de língua travada
e olhos cegos
aqueles a quem o amor feriu
sem derrubar.

Cantarei o gesto
dos que pedem e não alcançam
a resignação dos santos
o sorriso velado e inútil
dos homens conformados.

Eu cantarei os humildes
o homem sem amigos
o amante sem esperança
de retorno.

Cantarei o grito
de escuta universal
e de mistério nunca desvendado.
Serei o caminho
a boca aberta
os braços em cruz
a forma.

Para mim
virão os homens desconhecidos.



(Hilda Hilst, Balada de Alzira – 1951)





XI


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Tenho pena
das mulheres que riem com os braços
e choram de mentira para os homens.
E descobrem o seio antes do convite
e morrem no prazer ... olhos fechados.

Tenho pena
do poeta feito para só ser pai ... e ser poeta.
E daqueles que dormem sobre o papel
à espera do vocábulo
e dos que fazem filhos por acaso
e dos doidos e do cão que passa

E de mim ... que espero a morte
na confusão e no medo.



(Hilda Hilst, Balada do Festival – 1955)

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