sábado, 16 de setembro de 2006
SAMUEL BECKETT, A Companhia do Vazio
Quando estás perturbado, as contas simples são um conforto para ti. Um refúgio. No fim, chegas a sete metros cúbicos, aproximadamente. Mesmo imobilizado na escuridão intemporal, achas consolo nos números. Partes de um certo ritmo cardíaco e calculas quantas batidas por dia. Por semana. Por mês. Por ano. E calculando um certo tempo de vida, por toda a vida. Até a última batida. Mas, naquele momento, com pouco mais de setenta bilhões de batidas para trás, sentas-te na pequena cabana de verão, avaliando a cubagem. Sete metros cúbicos, aproximadamente. Por qualquer razão, isso te parece improvável e refazes as contas. Mas não tinhas ido muito longe, quando ouves seus passos leves. Leves para uma mulher daquela altura. Com o pulso acelerado abres os olhos e após um momento que parece uma eternidade, seu rosto surge à janela. Nessa posição, a palidez natural que tanto admiras quase toda azul, como, sem dúvida, tua palidez deve parecer-lhe completamente azul. Pois a palidez natural é uma característica que ambos têm em comum. Os lábios violeta não retribuem teu sorriso. Como essa janela está à altura de teus olhos, do lugar onde te sentas, e o chão, de qualquer forma, quase no mesmo nível do terreno do lado de fora, não podes deixar de imaginar se ela terá caído de joelhos. Sabendo, por experiência, que a altura e comprimento que têm em comum é a soma de segmentos iguais. Pois, quando de pé ou deitados, colam rosto com rosto, depois os joelhos se encontram, os púbis, e os cabelos das duas cabeças se misturam. Pode-se deduzir daí que a perda de altura do corpo sentado é a mesma que a daquele que se ajoelha? Nesse ponto, partindo do princípio de que a altura do assento é regulável, como no caso de certos tamboretes de piano, fechas os olhos para medir com uma medida mental e comparar o primeiro e segundo segmentos, isto é, da sola dos pés à rótula e dali à bacia. Como te entregavas, em movimento ou repouso, com os olhos cerrados em tuas horas de vigília! De dia e de noite. Àquela escuridão perfeita. Àquela luz sem sombras. Simplesmente partir. Ou ficar como agora. Surge uma única perna. Vista de cima. Separas os segmentos e os colocas lado a lado. É como quase presumiste. A parte superior é mais longa e a perda de altura de uma pessoa sentada é maior quando o assento está ao nível dos joelhos. Deixas os pedaços jogados por ali e abres os olhos, para encontrá-la sentada diante de ti. Tudo absolutamente imóvel. Os lábios rubros não retribuem teu sorriso. Teu olhar desce a seus seios. Não os recordavas tão grandes. Ao ventre. A mesma impressão. Que se mistura com a do ventre de teu pai forçando o cós desabotoado. Será possível que esteja grávida sem que tenhas, ao menos, pedido sua mão? Voltas-te para ti mesmo. Ela também fechou os olhos, advinhas. Assim ficam, sentados face a face, na pequena casa de verão. Com os olhos fechados e as mãos tocando o púbis um do outro. Naquela luz irisada. Naquele silêncio total
(Samuel Beckett, in The Company)
Állex Leila, a Herdeira
Baile
por Állex Leilla
As coisas brincavam na sala
e eu não sabia o que eram;
dançavam na copa,
também na varanda,
no telhado também.
Uma coisa eu podia: ver.
E não havia outras dimensões.
Eram formas e movimentos,
sons, circunferências.
Só não tinha ali uma coisa: o saber.
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Vísceras [1]
Do pouco que me lembro da vida, não há muito o que destacar.
De madrugada a cidade ficava mais estranha ainda e da janela do meu quarto, na mais absurda solidão, eu podia ver uma claridade piscando atrás dos prédios e mesmo sabendo se tratar de uma antena de rádio ou de estação de TV, pensava desconexo: uma nave espacial por certo quer descer.
Porque talvez me fizesse bem pensar assim , não sei. Que mais poderia ser?
A dor incontrolável da perda de dentes. Os meus dentes cediam à uma força desconhecida e caíam ou inchavam sem piedade. O nariz sangrava, catarro grosso e complicado me saía pela boca, havia não sei quantos vírus nos pulmões.
Os lençóis imundos e suados, ocultando pra sempre os doces cheiros do tempo em que eram lavados: de lavanda e sabão em pó.
Meu movimento da cama pro banheiro, do banheiro pra cama, arrastando dores que eu não poderia realmente descrever.
A necessidade terrível de um copo de chocolate quente, fumegante, pra escaldar a língua e expulsar o podre dos dentes, das gengivas, do estômago. E cravo, cravos pra mastigar e desafogar a garganta, recuperar minha voz desaparecida, minha voz morta, enterrada dentro de mim.
Às vezes, havia estrelas no céu que me assustavam. Eu as encarava e com o passar dos segundos ia vendo-as se perderem sem explicação. Não caíam nem sumiam atrás de nuvens, simplesmente iam diminuindo até fugirem de vez e, nem mesmo com os óculos, eu as conseguia ver.
A janela ficava sempre aberta. E mesmo quando tinha chuva brava, não fechava nem me afastava, tomava-a inteirinha, os pingos entrando pelos poros da pele, piorando meu estado, mas me alegrando em parte.
Um olhar semimorto no espelho.
A pele manchada de marrom, pontinhos escuros que cresciam de um dia pro outro. Meu corpo descamando. Descarnando.
Ninguém. Ninguém. Ninguém.
A comida acabava aos poucos. Eu comia tão mínimo, umas migalhas de manhã, que duravam até o anoitecer. Mas mesmo assim acabava, ainda que todo o meu dinheiro, o último que pude ajuntar no tempo em que trabalhava, estivesse todinho lá, empregado nela, na maldita comida que minava.
Acabava e restava somente água na torneira.
Ninguém cortou a água nem me despejou, mas cortaram a luz e o telefone.
Num dia muito difícil, até quis pedir ajuda. Mas não podia mais andar e gritando não adiantava, a voz se tornara tão mínima que sumia logo debaixo do barulho lá de fora. E era, inclusive, tempo de sons pesados: caminhões, buzinas, gritos, falares ríspidos, carnaval, heavy, grunge, mangue-beat, apitos, ônibus, aparelhos comuns à construção civil, rádios AM/FM o dia inteiro, televisores na Globo, no SBT, na MTV, a cidade, enfim, toda ela, lá fora, bem longe do meu alcance.
No último momento de lucidez – uma lucidez embaçada, é verdade, mas a última –, me lembrei de uns versos de uma canção de infância:
Havia um patinho que vivia a nadar
saiu de dentro d’água e se pôs a cantar:
quá quá quá quá quá quá quá quá quá...
lá vem a cozinheira com o seu facão na mão
o pobre do patinho foi parar lá no fogão:
tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu...
Não sei se era da minha infância, não sei se era coisa vista ou ouvida de outrem e guardada dentro de mim. Mas tentei, com tanta força, tão irresponsável violência, me lembrar dos últimos versos que completavam a canção, que, sem querer, ou querendo demais lá no pântano desconhecido de mim, BUM!, tudo se arrebentou nas têmporas, e eu fui, num segundo e de uma só vez, todo todo pelos ares.
Állex Leilla
[1] Publicado na Revista Iararana (Salvador/BA) em 1998.
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