sábado, 16 de setembro de 2006
Állex Leila, a Herdeira
Baile
por Állex Leilla
As coisas brincavam na sala
e eu não sabia o que eram;
dançavam na copa,
também na varanda,
no telhado também.
Uma coisa eu podia: ver.
E não havia outras dimensões.
Eram formas e movimentos,
sons, circunferências.
Só não tinha ali uma coisa: o saber.
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Vísceras [1]
Do pouco que me lembro da vida, não há muito o que destacar.
De madrugada a cidade ficava mais estranha ainda e da janela do meu quarto, na mais absurda solidão, eu podia ver uma claridade piscando atrás dos prédios e mesmo sabendo se tratar de uma antena de rádio ou de estação de TV, pensava desconexo: uma nave espacial por certo quer descer.
Porque talvez me fizesse bem pensar assim , não sei. Que mais poderia ser?
A dor incontrolável da perda de dentes. Os meus dentes cediam à uma força desconhecida e caíam ou inchavam sem piedade. O nariz sangrava, catarro grosso e complicado me saía pela boca, havia não sei quantos vírus nos pulmões.
Os lençóis imundos e suados, ocultando pra sempre os doces cheiros do tempo em que eram lavados: de lavanda e sabão em pó.
Meu movimento da cama pro banheiro, do banheiro pra cama, arrastando dores que eu não poderia realmente descrever.
A necessidade terrível de um copo de chocolate quente, fumegante, pra escaldar a língua e expulsar o podre dos dentes, das gengivas, do estômago. E cravo, cravos pra mastigar e desafogar a garganta, recuperar minha voz desaparecida, minha voz morta, enterrada dentro de mim.
Às vezes, havia estrelas no céu que me assustavam. Eu as encarava e com o passar dos segundos ia vendo-as se perderem sem explicação. Não caíam nem sumiam atrás de nuvens, simplesmente iam diminuindo até fugirem de vez e, nem mesmo com os óculos, eu as conseguia ver.
A janela ficava sempre aberta. E mesmo quando tinha chuva brava, não fechava nem me afastava, tomava-a inteirinha, os pingos entrando pelos poros da pele, piorando meu estado, mas me alegrando em parte.
Um olhar semimorto no espelho.
A pele manchada de marrom, pontinhos escuros que cresciam de um dia pro outro. Meu corpo descamando. Descarnando.
Ninguém. Ninguém. Ninguém.
A comida acabava aos poucos. Eu comia tão mínimo, umas migalhas de manhã, que duravam até o anoitecer. Mas mesmo assim acabava, ainda que todo o meu dinheiro, o último que pude ajuntar no tempo em que trabalhava, estivesse todinho lá, empregado nela, na maldita comida que minava.
Acabava e restava somente água na torneira.
Ninguém cortou a água nem me despejou, mas cortaram a luz e o telefone.
Num dia muito difícil, até quis pedir ajuda. Mas não podia mais andar e gritando não adiantava, a voz se tornara tão mínima que sumia logo debaixo do barulho lá de fora. E era, inclusive, tempo de sons pesados: caminhões, buzinas, gritos, falares ríspidos, carnaval, heavy, grunge, mangue-beat, apitos, ônibus, aparelhos comuns à construção civil, rádios AM/FM o dia inteiro, televisores na Globo, no SBT, na MTV, a cidade, enfim, toda ela, lá fora, bem longe do meu alcance.
No último momento de lucidez – uma lucidez embaçada, é verdade, mas a última –, me lembrei de uns versos de uma canção de infância:
Havia um patinho que vivia a nadar
saiu de dentro d’água e se pôs a cantar:
quá quá quá quá quá quá quá quá quá...
lá vem a cozinheira com o seu facão na mão
o pobre do patinho foi parar lá no fogão:
tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu...
Não sei se era da minha infância, não sei se era coisa vista ou ouvida de outrem e guardada dentro de mim. Mas tentei, com tanta força, tão irresponsável violência, me lembrar dos últimos versos que completavam a canção, que, sem querer, ou querendo demais lá no pântano desconhecido de mim, BUM!, tudo se arrebentou nas têmporas, e eu fui, num segundo e de uma só vez, todo todo pelos ares.
Állex Leilla
[1] Publicado na Revista Iararana (Salvador/BA) em 1998.
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