sexta-feira, 15 de março de 2013

O AMOR DUPLO E O DESESPERO DAS ÁGUAS


















LUNAR



Teu olho de lua
raiado de sombras.

Tua nádega branca
aureolada de lírios.

Teu beijo frio
pupila de neve.

Tua fala de harpa
mistério órfico.

Teu luzeiro verde
caracol de esmeralda.

Tua alma pesada
afugentada de estanho.


__________________________________


  


TRIÂNGULO


Vem.  e me acompanha pela torva janela
como um rastro sibilante e tépida correntude
carnosos lábios que exsudam perfeita simetria

Como as distâncias e as tatuagens ardentes de carne
que peleiam aportam cais tremescurecidos de dentro
e encontro ângulo ferido de si pela manhã cinzazul

Tristes moendas que o chão varre horas afora
silencio meus olhos na adaga do número e no gozo
das chuvas bebem-se as joias da embriaguez

Tudo tamanho de tato.  Tateio a teia, a tirana tigresa
que sobe.  As colinas da pele  o caminho de sangue
nas unhas  as encostas da alma  uma tessitura de anjos

Movem-se as asas das águas.  Elas ferem o ângulo que ri
amor marejado de temporais antes  naufrágio todo de mim
pelos campônios amarelecidos em que barro e palha morrem o canto

Tive tanto medo.


tanto.


                                       
                                             _____________________________________





IBIZA


Três vezes açambarcante
ao ruído negro
do meu centro.

do peito
da cabeça
do sexo.

com um xale escondida
as feições antigas
as farpas embaraçadas.

três vezes revivestes
no silêncio todo
de meu sangue e rumor.

enterrada a carne no rio
a boca   todos os buracos
sangrantes que fugi.

estupro  molhante onda
música encarnada vasculhante
de mim  de ti  das vagas frias

ferrugem  a miséria da casa
as tábuas frouxas do sorriso
a tristeza do veneno na boca do pai.

viestes de novo a viver, fúlgida
água, rugas descidas das Dunas
e a mover meu tempo de menino e peixe.



 ________________________________________

  



ESTRIDOR


                        Vencido.  Em volteios, vivo
                        e ao centro sempre disposto
                        dos velames em ventos vertido.

                        Pulsante.  Eu-próprio, morto
                        nos flancos disperso,  ignaro
                        dos sexos em lençóis amantíssimo.

                        Vertigem.  Vasculhamos portos
                        encontramos moscas, mansardas
                        moles mamas, mitigando fósforos.

                        Obus.  Homem, registro tardio
                        das palavras e do régio tanque
                        fogo, guerra e arte rubra do dorso.

                        Descanso.  Fera alma arremessada
                        de dentro,  este túnel que nunca
                        cavamos, este lábio que nunca mel

                        E nas mãos mádidas  maciez imersa,
                        vê o mal.  Madrepérola.  Nácar.
                        toca-me o centro, a friez da fronte.

                        Sentes.  Em meio às coxas pendentes
                        frescos mexilhões, a idade do Tempo
                        em que jorra um céu puro e deleitoso

                        A concha retida,  o vôo da fênix  o mar
                        as gaivotas vulcanizadas,  a flama do ar
                        no centro do Ser,  flores,  onde serpeia o gozo.



                                              _________________________________




SOLAR



                               Teu olho de sol
                                               lançado de luzes.

                                               Teu ventre dourado
                                               alcantilado de peixes.

                                               Tua língua quente
                                               ardência da lava.

                                               Tua música auriterra
                                               revelação do Zoroastro.

                                               Teu Templo de chamas
                                               asas marteladas do céu.

                                               Tua alma leve
                                               alquimia dos anjos. 










(Anderson Dantas, do livro inédito O Amor duplo e o Desespero das Águas
Imagem: do filme Bela Donna de Fábio Barreto)

terça-feira, 5 de março de 2013

ANJO
















ANJO

(2ª. versão)



As esculturas perderam-se na superfície da pele e das águas que não mergulharam com suas ágeis graças. Revisitado de cinzas que o fogo nem ardeu, pois a ausência é a verdade daqueles sinceros espíritos cinzelados de puro desejo.
No teatro daquelas tristezas e antigas alegrias o vento foi o branco algodão das têmporas que avançavam exauridas, ou a falta da cabeleira que o orgulho consumiu na juventude abrasadora.
Permaneço de pé, no abismo de meu fundo negror, tal como um grande pássaro que ostenta asas soporíferas e uma umidade de sangue na ponta dos lábios ou bico a estraçalhar a presa, a suposta amada que languescente desaba do degrau de seu desprezo alaranjado.
Sem cor! Retrato da dor às minhas mãos amaldiçoado, sem seu corpo ou maciez, sem nudez às escarpas lançado para morrer sem flautas, sem música, no vermelho do choro e na mandíbula da incerteza. Foi quando aturdido o atirador de facas me convidou para no circo rolar sobre as feridas, a passear no luar das geladas angústias e do poema rasgado na véspera dos dissabores.
E eu não pus nenhuma máscara e eu ria sobre meu próprio túmulo que apodrecia dentro de mim. E na hora que Satã soprou seu vômito negro, eu estava de saída para encontrar Aurora e ela me puxou para si, com uma ânsia aterradora, e me beijou as axilas e cheirou minha alma de sete facas e eu vi-me ao longo do oceano, só, com um peixe cru recitando versos de um Teatro Perdido, e ele me jogou uma rosa de espuma e um riso de sal; daí já era tarde para encontrar Pandora e então mais uma vez eu morri. Raiado de espinhos eu subi.   Ao monte. E nunca acordado despi lentamente a bainha de meu jorro. Foi quando pela lateral da galeria meu olho ficou a ver navios por cima dos marinheiros. Parti no dia seguinte e nunca mais a vi, eu ainda lembro da primeira vez que ela confiou na minha força; mesmo forte é meu desespero e minha travessia que desarruma pelos vastos campos o diário dos homens, dos bois e das aves amigas.
Em verdade, somos um Teatro que falta zarpar junto com a fome dos tubarões e livres para o vôo dos albatrozes.  Lá de cima eu fui.  Lá embaixo no inferno que suporto.  Lá discípulo de sempre.  Anjo.







(Anderson Dantas – prosa do livro inédito Cavalos do Inferno
Foto: do filme La Fille Sur Le Pont, 1999)


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

ALMA BEAT: Kenneth Rexroth






















AS VANTAGENS DA INSTRUÇÃO


Sou um homem sem ambições,
de poucos amigos, totalmente incapaz
de ganhar minha vida ou ficar mais moço,
fugindo de uma sentença justa qualquer.
Solitário, mal vestido, que importa?
À meia-noite eu faço para mim uma jarra
de vinho branco quente com sementes de cardamomo,
com a boina velha e um roupão cinza rasgado,
sento no frio escrevendo poesias,
rabiscando nas margens nus angustiados,
copulando com as gatinhas
ninfomaníacas da minha imaginação.




(tradução de Leonardo Fróes, 2003)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

EU NÃO DISSE A TODOS



















EU NÃO DISSE A TODOS


(esboços para um livro futuro)



EU NÃO DISSE A TODOS
vida da minha vida
minha filha nasceu no mar

Minha filha nasceu no mar

Uma parte de mim
ficou naquela
suspensão de vidro

Naquelas carnes tenras e sofridas
(um arroxeado de agulhas)

naqueles sonos envenenados
naqueles bebês mortos.

Uma parte de mim
é renúncia quase
guardada para o agora

E a outra
para como um cão
guardião de pêlos
e patas e dentes
(guardar para sempre
a alma-casa)

Meus olhos atentos
nos teus olhos atentos
nos pequenos lábios rosados
- e como preconiza a mãe –
olhar vívido, olhos de jabuticaba

EU não disse a todos
minha filha nasceu no mar.

Eu renuncio a morte
até ontem.



(Ilha de SC, 21/11/2012).

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

HISPANISMOS: Cesar Vallejo


























ESPERGÊNESE


Eu nasci um dia
em que Deus estava enfermo.

Todos sabem que vivo,
que sou mau: e não sabem
do dezembro desse janeiro.
Pois eu nasci um dia
em que Deus estava enfermo.

Existe um vazio
em meu ar metafísico
que ninguém pode tocar:
o claustro de um silêncio
que fala à flor de fogo.

Eu nasci um dia
em que Deus estava enfermo.

Irmão, escuta, escuta ...
Bem. E que eu não parta
sem levar dezembros,
sem deixar janeiros.
Pois eu nasci um dia
em que Deus estava enfermo.

Todos sabem que  vivo,
que mastigo ... E não sabem
porque em meu verso gritam,
escuro ranço de féretro,
ventos esfregados,
desenroscados da Esfinge
indagadora do Deserto.

Todos sabem ... e não sabem
que a Luz é tísica
e a Sombra obesa ...
E não sabem que o Mistério sintetiza ...
que ele é o corcunda
musical e triste que à distância denuncia
a passagem meridiana dos limites aos Limites.

Eu nasci num dia
em que Deus estava enfermo,
enfermo grave.


(Tradução e notas: Thiago de Mello, 1984
Espergênese: antigo termo legal que significa a aprovação de uma condenação)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Galeria Tátil II (Olhos da Alma)























(Galeria Tátil (Olhos da Alma) - CIC - MASC, Florianópolis, SC
Org. Juliana Hoffmann
Foto: Anderson Dantas)

Galeria Tátil (Olhos da Alma)























(Galeria Tátil (Olhos da Alma) - CIC - MASC, Florianópolis, SC
Org. Juliana Hoffmann
Foto: Anderson Dantas)

Galeria C. Ronald II























(Pã e o Jovem Poeta, em Exposição Pinturas e Esculturas C. Ronald - CIC - MASC, 
Florianópolis, SC
Foto: Anderson Dantas)

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Galeria C. Ronald























(Amor, em Exposição Pinturas e Esculturas C. Ronald - CIC - MASC,
Florianópolis, SC
Foto: Anderson Dantas)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

ORATÓRIO

















Oratório



2ª. versão

Dieu des impuissants, Dieu des innocents
Dieu qui n´a plus d´occupation
Excepté celle de mourir.

Joyce Mansour



Ó Deus
lasso e do avesso

Tende piedade de mim

Com tuas imensas
mãos

Nas chagas
do meu corpo

Teu punhal
de carne

Atravessando
a origem
e o desvio
do Uno

Ó Deus
Grandioso e cruel

Tende piedade de nós

Com os teus olhares
abismosos
de carvão

Teus ouvidos -
radares da raça

Que apodrece
a campo.

Ó meu Deus
tão justo

Alça de tripa e metal

Coberto
de teus balbucios

TODA DOR
e cruz

Que nos tortura
a Todos.

Deus,
alçapão
e negror
de nossa Morte,

Dai-nos a Paz.


sexta-feira, 28 de setembro de 2012

HISPANISMOS: Vicente Huidobro


























Canto II

(trechos)
____________________________


Eis-me aqui perdido entre mares desertos
Só como a pluma que cai de um pássaro na
            noite
Eis-me aqui numa torre de frio
Ao abrigo da lembrança dos teus lábios marítimos
Da lembrança de tuas complacências e de tua
            cabeleira
Luminosa e desatada como os rios de montanha
Irias ser cega para que Deus te desse as mãos?
Pergunto-te outra vez

O arco de teus supercílios estendido para as armas
            dos olhos
Na ofensiva alada vencedora segura com
            orgulhos de flor
Falam-te por mim as pedras espancadas
Falam-te por mim as ondas de pássaros sem céu
Fala-te por mim a cor das paisagens sem vento
Fala-te por mim o rebanho de ovelhas taciturnas
Adormecido em tua memória
Fala-te por mim o arroio descoberto
A erva sobrevivente atada à aventura
A aventura de luz e sangue de horizonte
Sem mais abrigo que uma flor que se apaga
Se há um pouco de vento

Eis-me aqui tua estrela que passa
Com tua respiração de fadigas distantes
Com teus gestos e teu modo de andar
Com o espaço magnetizado que te saúda
Que nos separa com léguas de noite

No entanto te advirto que estamos costurados
À mesma estrela
Estamos costurados pela mesma música estendida
De um a outro
Pela mesma sombra gigante agitada como árvore
Sejamos este pedaço de céu
Este trecho em que se passa a aventura misteriosa
A aventura do planeta que estala em pétalas de
            sonho



(Altazor, tradução de Antonio Risério e Paulo César Souza, 1991)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A Poética do Silêncio






A Poética do Silêncio
___________________________________



UMA NOITE, assolado pela solidão e melancolia, comecei a assistir um filme, que era este, OPIUM, e coincidentemente, vinha ao meu encontro naquele momento, o mesmo sentimento do protagonista, que era a aridez para escrever. Algumas imagens do filme levaram-me a pressentir alguns poemas de Trakl, como se eu estivesse em Grodek, nas camas sujas improvisadas dos feridos de guerra, mutilados tanto na carne quanto psiquicamente.
Também lembrei da entrevista que Cioran concedeu a Sylvie Jaudeau, e que transcrevo aqui algumas passagens:
- Essa nostalgia precisamente é o fundamento da sua visão de mundo. Como o senhor a define?
- Esse sentimento está, em parte, ligado às minhas origens romenas. Lá, ele impregna toda a poesia popular. É um dilaceramento indefinível que se chama, em romeno, “dor”, próximo do “sehsucht” dos alemães, mas sobretudo da “saudade” dos portugueses.
- O senhor escreveu: "Existem três tipos de melancolia: russa, portuguesa e húngara".
- O povo mais melancólico que eu conheço é o húngaro; a música cigana serve de prova disso. Brahms, na juventude, fascinou-se por ela, de onde o charme insinuante de sua obra.
- Por que o senhor rompeu com a poesia?
- Por esgotamento interior, por enfraquecimento da minha capacidade de emoção. Chega um tempo em que se fica ressecado. O interesse pela poesia está ligado a essa frescura do espírito sem a qual rapidamente os artifícios são percebidos. O mesmo vale para a prosa.  Na medida em que fico mais velho, escrever não me parece essencial. Livre de um ciclo de tormentos, descubro enfim a dor da capitulação. A rendição é a pior das superstições; sinto-me feliz de não ter sucumbido. Tenho imenso respeito pelos desistentes, os que tiveram coragem para apagar-se, sem deixar rastros.
- A sua verdade não reside no silêncio oposto hoje aos que ainda esperam livros do senhor?
- Talvez; mas se não escrevo mais, é por estar farto de caluniar o universo. Sou vítima de uma espécie de desgaste. A lucidez e a fadiga venceram-me – falo de uma fadiga filosófica tanto quanto biológica - , algo se rompeu em mim. Escreve-se por necessidade, e a lassitude elimina essa necessidade. Chega um tempo em que nada disso interessa mais. Em outras palavras, freqüentei pessoas em demasia que escreveram em excesso, obstinadas pela produção (...) Mas me parece que eu também escrevi demais. Um único livro teria bastado.

UMA NOITE em todas as noites, paira esse monstro da dúvida:
- Calar de vez ou escrever ainda?




Anderson Dantas - 2012
Eu moro numa Ilha.

sábado, 25 de agosto de 2012

HISPANISMOS: Juan Larrea


















O MAR EM PESSOA



Eis aqui o mar erguido em um abrir e fechar de olhos
                                               [ de pastor.
Eis aqui o mar sem sonho com um grande medo de
                                               [ trevos em flor.
E em postura de terra submissa ao parecer
vão com suas lãs de evidência, sua nuvem e seu labor.
Sob a sombra de um olmo nunca há tempo a perder.

Crédula, esquisita, a escuridão sai ao meu encontro.
Meu semblante abriga a casa do pão que trago dentro
Cortado a golpe sobre um pássaro inseguro.
E assim me afasto sob a ação do piano
que me costura nas plantas precursoras do mar.
Um cervo do outono começa a lamber a lua da tua
                                                                  [ mão.
E agora à minha volta o mundo começa a se desnudar
Para morrer de árvores ao fundo dos meus olhos.

Meus cabelos se enchem de peixes de penumbra
e de esqueletos de navios forçados

Sem ir mais longe,
tu és fria como o machado que abate o silêncio
na luta entre a paisagem e seu golpe de vista.

Mas quando o céu exporta seus célebres pianistas
e a chuva o odor da minha pessoa,
como teu formoso coração se atraiçoa.




(Juan Larrea, tradução de C. Ronald)

sábado, 3 de março de 2012

Meus Melhores Fragmentos - Hilda Hilst (parte quatro)


I


Porque há desejo em mim tudo é cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


(Hilda Hilst, Do Desejo, 1992)



IX

Amor chagado, de púrpura, de desejo
Pontilhado. Volto à seiva de cordas
Da guitarra, e recheio de sons o teu jazigo.
Volto empoeirada de vestígios, arvoredo de ouro
Do que fomos, gotas de sal na planície do olvido
Para reacender a tua fome.

Amor de sombras de ocasos e de ovelhas.
Volto como quem soma a vida inteira
A todos os outonos. Volto novíssima, incoerente
Cógnita
Como quem vê e escuta o cerne da semente
E da altura de dentro já lhe sabe o nome.

E reverdeço
No rosa de umas tangerinas
E nos azuis de todos os começos.


(Hilda Hilst, Amavisse, 1989)


XXXV


Ah, se eu soubesse de nuvens
Como te sei no hoje, morte minha,
Diria que me perseguem
Para escurecer
Essas caras de neve.
Diria que se detêm
Sobre a minha casa
Para ensombrar a alma. A minha.
E espalhadas
Diria que se avizinha
O cerco. A paliçada.
Que estou muda no além
Num sofrido perfil.
Nítida. Sozinha.

Se eu soubesse de nuvens
Como te sei
Não diria o que disse
Nem faria o poema. Olhava apenas.


(Hilda Hilst, Da Morte, Odes mínimas, 1980)

sábado, 28 de janeiro de 2012

Meus Melhores Fragmentos - Hilda Hilst (parte três)



















Enrodilhado. Capa.
E ao mesmo tempo
Úmida carapaça.
Enrodilhado

Silvando
À espera da graça.
À espera, Senhor
Da tua mordedura.

Perseguido
E perseguidor
Ando colado à terra.
Mas num salto, Senhor,
(a tua mão aberta
à minha espera)
Posso chegar ao alto.

Se me sei perseguido
Posso te amar, buscando.
Se não te sei comigo
(só sabendo longe)
Não saberia buscar
Esse que só se esconde.

Grande Perseguidor
Foge comigo.
E gozosos gozaremos
Uma única viagem.
O ouro de Kadosh
Se não te sabe amigo
Se esfarela nos ares.

O ouro de Kadosh
É ouro dividido.
(Porque se vem à minha mão
Antes de mim, é teu)
Grande Perseguidor
Me faz teu perseguido.

Sorver
Tua rutilante intimidade.
E Kadosh prisioneiro
Contente de seu cárcere.
Amar seu tempo derradeiro.
Kadosh, rútilo brilhante
Meeiro da tua linguagem.

Arder para a eternidade.
Kadosh, búzio-bandeira
Espiralada eloqüência
No topo da tua cidade.

Reinventar o Sem-Nome
Cem mil dias debruçado
No teu passo e travessia.

E ser
Muito mais do que o vento
À volta do teu segredo.
E ser muito mais do que o mar:

Ser inteiro chamamento
Ser convés e marinheiro.

Dentro de ti navegar.

Não ser livre. Repousar
Na tua garra
E madrugada certa de saber
Parte
De tua rara medula.

E não ser triste
Porque tua luz demora.
Ser quase o impossível:
Sobra clara, esquiva
Do mundo permissível
(Esse mundo de luto
Lucidez sem aurora
Lusfer e aparência
Sombra escura)

Ser de Kadosh contente.
Larva
Que a si mesmo se elabora.
E desejar tua asa
Teu sopro fremente, teu gozo

Se se fizer a hora.


(Hilda Hilst, Kadosh – 1973)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Meus Melhores Fragmentos - Hilda Hilst (parte dois)



















IV


_____________________


                                                        A Federico Garcia Lorca



Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
Quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
Pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
Que bebi da tua boca a fúria de umas águas
Eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
Porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE
E mais um tempo, nem será licito ao poeta ter memória
E cantar de repente: “os arados van e vên
                                      dende a Santiago a Belén”.
Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
A tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
Deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?
                                     “El passado se pone
                                     su coraza de hierro
                                     y tapa sus oídos
                                     con algodón del viento.
                                     Nunca podrá arrancársele
                                     un secreto.”
E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
De infância, o plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.


(Hilda Hilst, Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão – Poemas aos homens de nosso tempo – 1974)



XVII

____________________


Os juncos afogados
Um cão ferido
As altas paliçadas
Devo achar a palavra
Companheira do grito.

Um risco n´água
Um pássaro aturdido
Entre o capim e a estrada

Um grande girassol
Explodindo entre as rodas

Imagens de mim
Na caminhada.



(Hilda Hilst, Cantares de Perda e Predileção – 1983)



I

_____________________



Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado

Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Pés burilados
Fino formão
Dedo alongado agarrando homens
Galáxias. Corpo de homem?
Não sei. Cuidado.

Vive do grito
De seus animais feridos
Vive do sangue
De poetas, de crianças

E do martírio de homens
Mulheres santas.

Temo que se aperceba
De umas misérias de mim
Ou de veladas grandezas.

Soberbas
De alguns neurônios que tenho
Tão ricos, tão carmesins.
Tem esfaimada fome
Do teu lado que lateja.

Se tenho a pedir, não peço.
Contente, eu mais lhe agradeço
Quanto maior a distância.
E só porisso uma dança, vezenquando
Se faz nos meus ossos velhos.

Cantando e dançando, digo:
Meu Deus, por tamanho esquecimento
Desta que sou, fiapo, da terra um cisco
Beijo-te pés e artelhos.

Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado

Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Cuidado.



(Hilda Hilst, Poemas Malditos, gozosos e devotos – 1984)

domingo, 15 de janeiro de 2012

Meus Melhores Fragmentos - Hilda Hilst (parte um)



















XII



_____________________


Dia doze ... e eu não suportarei
o estado normal das cousas.
O ano que vem, não vou desejar
Felicidades a ninguém.

Nem bom natal, nem boas entradas.

Meus amigos sabem de tudo o que eu sei.
E continuam a viver sem interrupção,
apressadamente como no ato de amor.
São doidos e não percebem que amanhã
Cristina não virá.
Que amanhã Cristina vai morrer
porque ama a vida.

Amanhã serei corajosamente Cristina
Eu, amando todos os que sofrem.
Eu ... essência.

Mas os meus amigos, coitados,
não percebem.
Fazem filhos nascer, fazem tragédia.
Não sabem que o amor não é amor
e a natureza é um mito.

Não sabem de nada os meus amigos.
E não vou explicar
porque podem ficar sentidos.
São puros, vão morrer como anjos.
Vão morrer sem nada saber
daqueles dias perdidos.

Vão morrer sem saber que estão morrendo.



(Hilda Hilst, Presságios – 1950)





I


_____________________

Eu cantarei os humildes
os de língua travada
e olhos cegos
aqueles a quem o amor feriu
sem derrubar.

Cantarei o gesto
dos que pedem e não alcançam
a resignação dos santos
o sorriso velado e inútil
dos homens conformados.

Eu cantarei os humildes
o homem sem amigos
o amante sem esperança
de retorno.

Cantarei o grito
de escuta universal
e de mistério nunca desvendado.
Serei o caminho
a boca aberta
os braços em cruz
a forma.

Para mim
virão os homens desconhecidos.



(Hilda Hilst, Balada de Alzira – 1951)





XI


_____________________

Tenho pena
das mulheres que riem com os braços
e choram de mentira para os homens.
E descobrem o seio antes do convite
e morrem no prazer ... olhos fechados.

Tenho pena
do poeta feito para só ser pai ... e ser poeta.
E daqueles que dormem sobre o papel
à espera do vocábulo
e dos que fazem filhos por acaso
e dos doidos e do cão que passa

E de mim ... que espero a morte
na confusão e no medo.



(Hilda Hilst, Balada do Festival – 1955)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Nova Lei dos Dias
















pisado e remontado

de pedra
uma após outra
e outra

comer o barro
das horas
a cimentura dos dias

É tudo.


(Anderson Dantas, 27/12/2011)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

vida















UMA

          folha seca

                           que cai

          e flana

                           perdida


expletiva.

 
 
(Anderson Dantas, Ilha 22 Dezembro)

sábado, 5 de novembro de 2011

Renata Pallottini e o Cantar do Povo





















ESSE TRABALHO LIMPO

Esse trabalho limpo de aprontar
as verduras e os caldos
                                    e as carnes nos pratos
esse trabalho limpo de afastar
o capim do pé das árvores

esse esforço contínuo de tratar
as feridas das aves
e de juntar os ovos e contá-los
e de se preocupar porque não chove

isso arreda as loucuras aninhadas
na raiz dos cabelos e na nuca
e desfaz as canseiras do fundo dos olhos
e a dor tortuosa que há nas rugas
isso faz com que a gente não urine cianeto
e não cuspa mercúrio e não chore bromato
mas sim que tenha fome. Suspire, e tenha fome
e um macio cansaço na polpa do braço.

___________________________________________

NÃO É VERDADE

Não é verdade
não se pode ser que o Bem e o Mal
se equivalham.

Esta vontade áspera
de entender o passado
deve ter qualquer forma
qualquer significado.

Não gosto de sofrer
prefiro as festas.
Mas a vida é também o sangue
e a merda.
Não gosto de ver morrer
os agonizantes
mas a verdade é que eles só morreram
antes.

Não pode ser que tudo seja igual
que tanto faça.
Também eu gostaria de andar sobre as plumas,
mas este chão me queima as patas.


(Renata Pallottini - Reflexões sobre a Arte - livro Cantar Meu Povo, Massao Ohno, 1980)

Total de visualizações de página