domingo, 13 de setembro de 2009
sábado, 5 de setembro de 2009
Shadow on the sun - Audioslave
SHADOW ON THE SUN
Uma vez eu pensei em descarregar o teu peso
E te deixar naquele lugar.
Você acreditava que eu era capaz
Você já viu acontecer antes.
Eu poderia ler os teus pensamentos
E dizer o que você via
E nunca dizer uma só palavra.
Agora tudo isso está "morto e enterrado"
Para nunca mais voltar...
Eu posso te dizer porquê as pessoas morrem sozinhas
Eu posso te dizer que eu sou uma sombra no sol
Olhando para a perda,
Procurando as causas
Mas nunca tem a certeza.
Não há nada além de um buraco
Para se viver sem alma
E não há nada para aprender...
Eu posso te dizer porquê as pessoas enlouquecem,
Eu posso te mostrar como você também pode enlouquecer,
Eu posso te dizer porquê o fim nunca chegará,
Eu posso te dizer que eu sou uma sombra no sol.
Vultos de todos os tamanhos se movem pelos meus olhos
As portas em minha cabeça estão trancadas por dentro
Cada faísca acende uma vela
Em memória daquele que vive sob a minha pele
Eu posso te dizer porquê as pessoas enlouquecem,
Eu posso te mostrar como você também pode enlouquecer,
Eu posso te dizer porquê o fim nunca chegará,
Eu posso te dizer que eu sou uma sombra no sol.
O FALCÃO, por HOPKINS
THE WINDHOVER
Eis que avistei esta manhã o amado da manhã, delfim do
reino
da luz-do-dia , Falcão arrebatado pela aurora
mosqueada, em seu cavalgar
No ar encapelado que, sob ele, firme se alisa, e ao galgar
Tanta altura, como se eleva espirilando, preso às rédeas de
uma asa ondulante,
Em seu êxtase! E então lá vai, lá vai balouçante
Qual pé de patim macio desliza em arco retesado; o
arremesso, o planar
Afrontam a ventania. Meu coração escondido, em sigilo,
Batia pelo pássaro – o alcance, a mestria daquilo!
Beleza bruta, bravura, ação, oh! altanaria, plumas,
amplidão –
Aqui concentrai-vos! E a fagulha que então de ti irromper,
um bilhão
De vezes mais amorável, mais temível, Ó meu paladino!
Nem surpreende: ao arar paciente, o arado lá sob o sulco
contínuo
Faísca; e o borralho azul-pálido, ah! meu tesouro,
Ao tombar atrita-se, e abre-se em talhos vermelho-e-ouro.
(Gerard Manley Hopkins, 1844-1889)
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
anfiteatro
EU SONHEI
em ti,
meu pai.
na penumbra
senti o hálito
espirilado
do fumo
não colhi a lenha
para acender
o fogo
de nosso gelo hirto
e para a casa velha
não apanhei
nenhum junco
carcomido por ratos
não catei
nenhum fruto
não icei balde
para o poço
e água morta
EU ME PERDI
meu pai
em cega furna
e expiação.
(Ilha de SC, 11h30)
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
Ave Lúcifer
ave, lúcifer
as maçãs
envolvem os corpos nus
nesse rio que corre
em veias mansas dentro de mim
anjos e arcanjos
não pousam neste éden infernal
e a flecha do selvagem
matou mil aves no ar
quieta, a serpente se enrola
nos seus pés
é lúcifer da floresta
que tenta me abraçar
vem amor
que um paraíso
num abraço amigo
sorrirá para nós sem ninguém nos ver
prometa
meu amor macio
como uma flor cheia de mel
pra te embriagar, sem ninguém nos ver
tragam uvas negras
tragam festas e flores
tragam copos e dores
tragam incensos odores
mas, tragam lúcifer pra mim
em uma bandeja pra mim
sábado, 29 de agosto de 2009
Inferno: STRINDBERG

TRECHOS DE MEU DIÁRIO
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Leio um delicioso panfleto, A alegria de morrer, que me dá o desejo de deixar este mundo. Para explorar a fronteira entre a vida e a morte, deito-me na cama, destapo o frasco de cianureto de potássio, que desprende seu odor mortal. Ei-lo que se aproxima de mim, o homem da foice: é delicado e tem ares voluptuosos; mas, no último instante, sempre chega alguém ou acontece alguma coisa de imprevisto: o garçom do hotel sob um pretexto qualquer, uma vespa que entra pela janela.
As potências recusam-me a única alegria, e submeto-me diante de sua vontade.
Nos começos de Julho, o hotel se esvazia com os estudantes que partem em férias.
Eis por que a chegada de um estrangeiro, no quarto vizinho, excita-me a curiosidade. O desconhecido não fala nunca; parece sempre ocupado em escrever, por trás da divisória que nos separa. Numa atitude estranha, recua todas as vezes que eu aproximo minha cadeira da parede; repete meus movimentos, como se quisesse me irritar com isso.
A coisa continua por três dias. Depois, percebo que, quando vou me deitar, alguém se deita no quarto que está do lado de minha mesa; mas, estando deitado, ouço-o levantar-se e ir para o outro quarto, ocupando o leito vizinho do meu. Escuto-o estendido paralelamente a mim: folheia um livro, depois apaga a lâmpada, respira, vira de lado e dorme.
Um silêncio absoluto reina no quarto do lado oposto. Logo, ele ocupa ambos os quartos. É desagradável ser assediado pelos dois lados.
Só, inteiramente só, janto com o prato trazido numa bandeja a meu quarto, e como tão pouco que o garçom se compadece de mim. Há uma semana que não ouço minha própria voz, e, por falta de exercício, o som começa a desaparecer. Estou inteiramente sem dinheiro: fazem-me falta os cigarros e os selos postais.
Agora, sentado na poltrona, abro a Bíblia e leio ao acaso: “Não refletem nem consideram, nem têm o bom senso de dizer: Eu queimei no fogo metade desta madeira, e cozi pães sobre as brasas; cozi carnes e comi-as, e então de seu resto hei de fazer um ídolo? Hei de prostrar-me diante de uma árvore? Uma parte deste pau está já feita em cinza; sem embargo disso, o seu coração insensato adorou a outra parte, e ele não salvará a sua alma, dizendo: É sem dúvida uma mentira o que está na minha mão.
... Eis que diz o Senhor, que te remiu e que te formou no ventre da tua mãe: Eu sou o Senhor, que faço todas as coisas, que só por mim estendi os céus, e firmei a terra, sem que ninguém me ajudasse. Eu faço baldar os prognósticos dos adivinhos, e torno furiosos os agoureiros. Eu faço recuar os sábios, e converto sua ciência em loucura”.
(August Strindberg, Inferno)
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Walt Whitman, fragmentos do mar e eu

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Tu mar! Também a ti me rendo – adivinho o teu sentido,
Da praia observo os teus dedos curvos e convidativos,
Creio que te recusas a regressar sem me seres em ti,
Devemos estar juntos algum tempo, dispo-me, leva-me depressa para longe
da terra,
Aconchega-me, suavemente, embala-me na tua sonolenta ondulação,
Bate-me com a tua amorosa água, posso retribuir-te.
Mar de grandes vagas espraiadas,
Mar de ampla e convulsiva respiração,
Mar do sal da vida e dos túmulos por cavar mas sempre abertos,
Mar que bramas e esculpes as tempestades, mar caprichoso e sublime
Fundo-me contigo, também sou de uma e de todas as fases.
Participante do fluxo e do refluxo sou, exalto o ódio e a reconciliação,
Glorifico os amantes e os que abraçados dormem.
Sou quem testemunha o amor ao próximo,
(Posso enumerar os objetos da casa e omitir a casa que os contém?)
Não sou apenas o poeta da bondade, reconheço que também sou
o poeta da maldade.
Que arrebatamento é este sobre a virtude e o vício?
O mal impele-me e impele-me o resgate do mal, permaneço indiferente,
O meu caminho não é o caminho de quem descobre nem de quem o recusa.
Rego as raízes de tudo o que cresce.
(Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo)
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
BORGES: Pampa e a Vida Inteira

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Pampa:
Avisto tua amplidão que afunda os subúrbios,
estou me dessangrando em teus poentes.
Pampa:
Posso ouvir-te nas tenazes violas sentenciosas,
e nos altos bem-te-vis e no ruído cansado
dos carros de bois que vêm do verão.
Pampa:
O espaço de um pátio colorado me basta
para te sentir meu.
Pampa:
Eu sei que te cortam
trilha e atalhos e o vento que te muda.
Pampa sofrido e macho que estás nos céus,
não sei se és a morte. Sei que estás em meu peito.
MINHA VIDA INTEIRA
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Aqui outra vez, os lábios memoráveis, único e semelhante
a vós.
Persisti outra vez na aproximação da ventura e na intimidade
do sofrimento.
Cruzei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca, de uma hispânica quietude.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada
imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Acredito profundamente que isso é tudo e que não verei nem
farei coisas novas.
Acredito que minhas jornadas e minhas noites se igualam em
pobreza e riqueza aos de Deus e aos de todos os
homens.
(Jorge Luis Borges, Lua Defronte, 1925)
sábado, 4 de julho de 2009
CARLOS NEJAR: Ensaios de Fogo

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1.
Os animais, como as palavras, não mentem. Os homens, sim.
Mas nalgum recanto, suas palavras os desvelam. Não calam.
Querem a revelação.
O animal possui o mesmo instinto nostálgico dos vocábulos.
Se os símbolos ocultam coisas, só as palavras as dizem.
E sem dizer, são cintos postos na gaveta das rochas.
Tendem a apodrecer. Por inanição, inércia.
Sob a fluvial ferrugem.
2.
A memória é um animal solto sobre o coração.
Que também conhece inércia, apodrecimento.
Sem palavras.
Alegoria
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2.
O relógio é a medida do homem. Mas também objeto concreto da morte.
Como não entrelaçar esse silêncio cósmico de tempo a tempo, que as
palavras pendulam?
Não conhecemos ainda sequer a orla da casa bordada por esta agulha
de magnéticos naufrágios.
(Carlos Nejar, Editora Escrituras)
terça-feira, 21 de abril de 2009
TU, tão negra

TU, tão negra
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À Giovana
Tu, tão negra
que te moves
como o tigre na colina
que serpeias o corpo
num bailado nu
vestal andrajoso da carne.
tu, parreiral roxo
negras frutas uvas dos seios
entre um baixio
de pássaros e o mistério das furnas
entre cordames de fogo
e a forja redentora das águas
Tu, tão negra
entre teu samba & teu jazz
canta o alvoroço dos vagalhões
e freme no silêncio de uma concha.
redemoinho e espelho
afogada em espumas de vento
e a violência plural das dores jorrantes
tardes que o outono vem trazendo
e marcando com pegadas
nas areias onde os peixes fisgam luares
Tu, tão negra
que te moves
para dentro do meu sonho
ardor andarilho, busca marinha
mádidas frescuras
princípio de precipício
criança, bailarina e pujante mulher
EU, tão negro dentro do meu sono.
(Anderson Dantas, 18/04/2009, Ilha de SC)
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
Vícios Sentidos

Vícios Sentidos
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1.
na primeira noite,
nenhum cheiro.
nenhum pó.
e quatrocentas celas
abriram-se no núcleo.
2.
Hércules e Onfale
vencida carícia,
nadam entre fogos
e depois sumiram
3.
minha visão
é o martelar
de cem
cavalos cegos.
4.
quer dizer
que nem sempre
passos vão a caminho de.
grácil cruel inútil
5.
Tato.
um bailado mímico
entre o esqueleto
e o girar
que tomba ao fundo.
6.
ver os dedos
como lentos e espessos
cardumes
nem molhados
nem algas.
7.
sétimo sentido
areia e asa
aço vidro e vigias
entrelaçados nós
todos patéticos.
(Anderson Dantas, Ilha de SC)
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
GARCIA LORCA: O Poeta contra a tirania

[O CANTO QUER SER LUZ]
O canto quer ser luz.
No escuro o canto tem
fios de fósforo e lua.
A luz não sabe o que quer.
Em seus limites de opala,
encontra-se consigo mesma
e volta.
BACO
VERDE rumor intacto.
A figueira me estende os braços.
Como uma pantera, sua sombra
espreita a minha lírica sombra
A lua conta os cachorros
Equivoca-se e começa de novo.
Ontem, amanhã, negro e verde,
rondas meu cerco de lauréis.
Quem como eu te quereria,
se me mudasse o coração?
... E a figueira grita para mim e avança
terrível e multiplicada.
VÊNUS
Assim te vi
A jovem morta
na concha da cama,
despida de flor e brisa
surgia na luz perene.
Ficava o mundo,
lírio de algodão e sombra,
assomado às vidraças,
vendo o trânsito infinito.
A jovem morta
surcava o amor por dentro.
Entre a espuma dos lençóis
perdia-se a sua cabeleira.
DESPEDIDA
Se eu morrer,
deixai o balcão aberto.
O menino chupa laranjas.
(Do meu balcão eu o vejo.)
O segador sega o trigo.
(Do meu balcão eu o sinto.)
Se eu morrer,
deixai o balcão aberto!
Federico GARCIA LORCA – Canções
domingo, 26 de outubro de 2008
TODA MULHER

82.
nós que nos amávamos tanto
hoje estamos tão longe
sem rima, sem sono
nem lembro
de como eu te achava estranho
_________________________
165.
ele prefere as nórdicas
as ricas, as putas
as filhas das tias
letradas, peitudas
alunas da puc
solteiras, taradas
mulheres pudicas
peludas, escravas
as boas de cama
mulatas, mineiras
as freiras da itália
escocesas, peladas
as bem mal-amadas
aquelas que dizem te amo
e mais nada
________________________
178.
toda mulher tem um homem que se foi
um homem que a deixou por outra
um homem que a deixou por um câncer
um homem que nem mesmo a notou
um homem que a deixou por um ideal
um homem que sumiu num temporal
um homem que não passou de dois drinques
toda mulher tem um homem que se foi
um homem que foi pego em flagrante
um homem que prometeu um brilhante
um homem que saiu para jogar
toda mulher tem um homem
que esqueceu de voltar
(Martha Medeiros)
sexta-feira, 11 de julho de 2008
O velho Buk e o amor
como ser um grande escritor
você tem que trepar com um grande número de mulheres
belas mulheres
e escrever uns poucos e decentes poemas de amor.
e não se preocupe com a idade
e/ou com os talentos frescos e recém-chegados.
apenas beba mais cerveja
mais e mais cerveja
e vá às corridas pelo menos uma vez por
semana
e vença
se possível.
aprender a vencer é difícil -
qualquer frouxo pode ser um bom perdedor.
e não se esqueça do Brahms
e do Bach e também da sua
cerveja.
não exagere no exercício.
durma até o meio-dia.
evite cartões de crédito
ou pagar qualquer conta
no prazo.
lembre-se que nenhum rabo no mundo
vale mais do que 50 pratas.
(em 1977).
e se você tem a capacidade de amar
ame primeiro a si mesmo
mas esteja sempre alerta para a possibilidade de uma
derrota total
mesmo que a razão para essa derrota
pareça certa ou errada -
um gosto precoce de morte não é necessariamente
uma coisa má.
fique longe de igrejas e bares e museus,
e como a aranha seja
paciente -
o tempo é a cruz de todos,
mais o
exílio
a derrota
a traição
todo este esgoto.
fique com a cerveja.
a cerveja é o sangue contínuo.
uma amante contínua.
arranje uma grande máquina de escrever
e assim como os passos que sobem e descem
do lado de fora de sua janela
bata na máquina
bata forte
faça disso um combate de pesos pesados
faça como o touro no momento do primeiro ataque
e lembre dos velhos cães
que brigavam tão bem:
Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.
se você pensa que eles ficaram loucos
em quartos apertados
assim como este em que agora você está
sem mulheres
sem comida
sem esperança
então você não está pronto.
beba mais cerveja.
há tempo.
e se não há
está tudo certo
também.
(Charles Bukowski, in O amor é um cão dos diabos)
sábado, 14 de junho de 2008
O objeto-fetiche

Em vez de auditivo ou cinestésico, o suporte de trabalho pode ser visual ou tátil. Neste caso, as possiblidades são infinitas.
Posso, por exemplo, começar com um objeto, natural ou artificial, que me represente ou "me interpele" e, depois, entrar em relação direta, visual, tátil ou verbal com este símbolo exterior de meu ser interior.
Posso falar com uma flor, um raminho, uma pedra, ou ainda com um ancinho ou uma terrina e expressar-lhe o que sinto ... e, depois, eventualmente, responder em seu lugar.
Joceline: - Escolhi esta velha roda de carrinho de mão que encontrei no galpão porque ela me lembrou imediatamente a liberdade, mas também a solidez ... Gosto de sua madeira marcada pelo tempo.
Terapeuta: - Você pode falar-lhe diretamente, em vez de falar dela para mim ou descrevê-la?
Joceline: - Eu gosto de você porque você teve uma vida bem cheia ... Você enfrentou obstáculos, sofreu, um dos seus raios está quebrado ... mas seu cubo central continua inteiro!... Sua madeira está apodrecendo ... e, no entanto, dá vida ao musgo ...
Terapeuta: - A roda poderia responder e falar?
Joceline - Sim! É verdade, já estou velha. Não sou mais rutilante como antes ... Mas esta pintura com que me cobriram em minha juventude não era eu verdadeiramente ... Me pintaram para atrair o jardineiro ... Mas isso não o impediu de me negligenciar! Ele acabou por me trocar por um carrinho mais moderno ... com um pneu oco, todo estufado de ar ... e se foi com ele ... (ela chora) ... Não importa! Segui meu caminho ... Ele me usou, mas não me amava verdadeiramente ... Agora sou livre ... Estou separada do corpo do carrinho, mas posso viajar sem parar" E, apesar da minha idade, ainda posso interessar as pessoas (ela chora de novo).
(Gestalt, Serge e Anne Ginger)
quinta-feira, 1 de maio de 2008
Caio: pescador de sentidos

Mergulho II
Na primeira noite, ele sonhou que o navio começara a afundar. As pessoas corriam desorientadas de um lado para outro no tombadilho, sem lhe dar atenção. Finalmente conseguiu segurar o braço de um marinheiro e disse que não sabia nadar. O marinheiro olhou bem para ele antes de responder, sacudindo os ombros: “Ou você aprende ou morre”. Acordou quando a água chegava a seus tornozelos.
Na segunda noite, ele sonhou que o navio continuava afundando. As pessoas corriam de outro para um lado, e depois o braço, e depois o olhar, o marinheiro repetindo que ele ou aprendia a nadar ou morria. Quando a água alcançava quase a sua cintura, ele pensou que talvez pudesse a aprender a nadar. Mas acordou antes de descobrir.
Na terceira noite, o navio afundou.
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Nos poços
Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.
(Caio Fernando Abreu, in Pedras de Calcutá e O Ovo Apunhalado)
terça-feira, 29 de janeiro de 2008
CADERNO EXPRESSIONISTA três

O chapéu voa da cabeça do cidadão
Em todos os ares retumba-se gritaria.
Caem os telhadores e se despedaçam
E nas costas – lê-se – sobe a maré.
A tempestade chegou, saltam à terra
Mares selvagens que esmagam largos diques.
A maioria das pessoas tem coriza.
Os trens precipitam-se das pontes.
(Jakob Van Hoddis, 1911)
PROGRAMA
Não queremos poesia,
Queremos mágicas, artifícios,
Procuramos tapar na existência fatais vazios
E apesar de imenso esforço, uma atrofia.
Mas o que sabem vocês outros da secreta elevação,
Dos sagrados e histéricos soluços da garganta a chorar,
Quando, consumidos pelo haxixe da alma em imersão,
Beijamos o primeiro degrau, para além de cujo limiar
Os deuses moram?
(Wilhelm Klemm, 1915)
O PASSEIO
Tu, esses quartos
Fixos e as áridas ruas
E o rubro sol das casas,
A infame repugnância de todos
Os livros há muito já folheados –
Não os agüento mais.
Vem, precisamos sair da cidade
Para muito longe.
Vamos deitar-nos em
Suave gramado.
Ameaçadores e tão abandonados,
Contra o absurdamente grande,
Mortalmente azul, brilhante céu,
Levantaremos mãos choradas
E encantados,
Descarnados, apáticos olhos.
(Alfred Lichtenstein, 1913)
* Traduções de Claudia Cavalcanti.
domingo, 27 de janeiro de 2008
CADERNO EXPRESSIONISTA dois: Gottfried Benn

A boca de uma moça que há muito jazia em meio aos juncos
parecia toda ruída.
Quando abriram o peito, o esôfago era só buracos.
Acabaram achando num recanto embaixo do diafragma
um ninho de ratos jovens.
Uma das irmãzinhas pequenas morrera.
Os outros viviam do fígado e dos rins,
bebiam sangue frio e tinham
passado ali uma bela juventude.
E bela e pronta foi também a morte deles:
foram jogados todos juntos na água.
Ah, como os focinhinhos guinchavam!
(Gottfried Benn, tradução de Mario Luiz Frungillo e Luís Gonçales de Camargo)
NOIVA DE NEGRO
A nuca loura de uma mulher branca
repousava sobre uma almofada de sangue escuro.
O sol lhe maltratava os cabelos,
lambera longamente as coxas claras
e se ajoelhara junto dos seios, mais escuros,
ainda não desfigurados por vícios e partos.
Um negro ao seu lado: olhos e fronte
arrebentados por um coice de um cavalo. Havia
enfiado dois de seu imundo pé esquerdo
dentro da orelha branca e pequena dela.
Mas ela estava deitada e dormia como uma noiva:
às portas da felicidade do primeiro amor
o sangue quente e jovem na expectativa
de muitas viagens ao céu.
Até que lhe
e lhe atirassem um avental púrpura de sangue morto
à volta dos quadris.
REQUIEM
Em cada mesa dois. Mulheres e homens entre-
cruzados. Sem tormento. E próximos e nus.
O peito esquartejado. O crânio aberto. O ventre
pela última vez agora a dar à luz.
Do cérebro aos testículos, cada um três malgas rentes.
E o templo de Deus e o estábulo infernal
agora peito a peito no chão da cuba, os dentes
a arreganhar prò Gólgota e a queda original.
O resto nos caixões. Tantos recém-nascidos:
cabelos de mulher, um peito de miúdo,
pernas de homem. De dois amantes prostituídos,
qual vindo de um só ventre, vi que ali estava tudo.
(tradução de Vasco Graça Moura)
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
CADERNO EXPRESSIONISTA: Georg Trakl

A alma silencia o azul da primavera.
Entre a úmida ramagem do ocaso,
freme a fronte dos amantes.
A cruz verdeja! Em escuro colóquio
conheceram-se homem e mulher.
No muro esquálido
o solitário vaga com seus astros.
Nas sendas do bosque, ao clarão da lua,
afundou na mata
de esquecidas caças; olhar do azul
irrompe das rochas em ruínas.
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DER SCHLAF
Malditos venenos escuros,
sono branco!
Este insólito jardim
de árvores crepusculares
cheio de cobras, borboletas noturnas,
aranhas, morcegos.
Forasteiro! Tua sombra errante
na tarde rubra,
um negro corsário
em mar de aflição e sargaço.
Esvoaçam brancas aves na beira da noite,
sobre cidades cindidas
de aço.
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KLAGE
Sono e morte, as águias sombrias
rondam-me a fronte a noite inteira:
a áurea imagem do homem
engole-a a onda fria
da eternidade. Em recifes medonhos
rompe-se o corpo purpúreo.
E queixa-se a voz escura
sobre o mar.
Irmã de imensa melancolia,
olha: um barco assustado naufraga
sob estrelas,
na face calada da noite.
(Georg Trakl, tradução de Marco Lucchesi, 1990)
sábado, 12 de janeiro de 2008
Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere

1. não rir, não lamentar,
nem amaldiçoar, mas compreender.
(SPINOZA)
2. links.
linkar Lourenço, o cheiro do ralo.
Ernest Becker, Nietzsche,
Kierkegaard, eu
e outros jogos de armar.
3. Lourenço não gosta da noiva, nem dele, nem de ninguém.
presume-se que, quem não gosta de ninguém, não teme a
morte, nem mesmo se for uma facada no coração.
perdeu. dois balaços no peito.
4. sinto-me livre para fracassar.
5. mas, se não teme morrer, o que o torna
tão angustiado? a ausência? solidão?
talvez o nervo da angústia seja a perda do pai
morto na guerra (duvidosa e fantasiosa)
sua tentativa patética e simbólica
de reconstruí-lo.
6. Muitos morrem demasiado tarde e alguns
demasiado cedo. Ainda soa estranha a doutrina:
“Morre a tempo”!
Morre a tempo: é o que ensina Zaratustra.
Sem dúvida, quem nunca vive a tempo, como iria
morrer a tempo? Antes não tivesse nascido! – É assim
que aconselho os supérfluos.
7. Quem é Paula Braun? (que bela bunda!)
8. A INVEJA DO PÊNIS
A verdadeira ameaça que a mãe representa passa a ser
vinculada à sua evidente corporalidade. Seus órgãos genitais são
usados como um conveniente foco para a obsessão da criança
com o problema da corporalidade. Se a mãe é uma deusa da luz,
é também uma bruxa das trevas. A criança vê a ligação da mãe
com a terra, seus secretos processos corporais que a prendem à
natureza: o seio com seu misterioso leite viscoso, os odores e o
sangue menstruais, a quase contínua imersão da mãe produtiva
em sua corporalidade, e não menos – algo a que a criança é
muito sensível – o caráter muitas vezes neurótico e irremediável
dessa imersão.
9. A inveja do pênis, então, surge do fato de que os órgãos genitais
da mãe foram separados de seu corpo com uma focalização do
problema de degradação e vulnerabilidade. Bernard Brodsky
observa, sobre sua paciente: “Sua concepção da mulher como
fecal estimulara enormemente a sua inveja do pênis, já que o
pênis vigorosamente ereto era o antônimo das fezes mortas,
inertes”.
10. HUMANOS TOTAIS E HUMANOS PARCIAIS
É simplesmente o seguinte: de que adianta falar de “desfrutar
a nossa plena humanidade”, - como insiste Maslow,
acompanhado de tantos outros – se a “plena humanidade”
significa o desajuste primário em relação ao mundo? Se você se
livrar de sua couraça neurótica de quatro camadas, a armadura
que cobre a mentira caracterológica sobre a vida, como poderá
falar de “desfrutar” essa vitória de Pirro? A pessoa abre mão
de algo restritivo e ilusório, é verdade, mas apenas para se ver
face a face com algo ainda mais horrível: o desespero
autêntico. Plena humanidade significa pleno medo e pleno
tremor, pelo menos uma parte das horas em que o indivíduo
está acordado. Quando você faz com que uma pessoa surja
para a vida, longe de suas dependências, de sua segurança
automática, obtida ao abrigo do poder de outrem, que alegria
poderá prometer a essa pessoa, portadora do fardo de sua
solidão?
11. O tormento de Kierkegaard era o resultado direto de ver o
mundo tal como é na realidade em relação à sua situação
como criatura. A prisão do caráter da pessoa é
trabalhosamente construída para negar uma coisa, e apenas
uma coisa: a sua condição de criatura. Isso é o terror. Uma
vez admitido que é uma criatura que defeca, você convida o
oceano primitivo da angústia animal a desaguar sobre você.
Mas isso é mais que do que angústia da criatura, é também a
angústia do homem, a angústia que resulta do paradoxo
humano de que o homem é um animal cônscio de sua
limitação animal. A angústia é o resultado da percepção da
verdade de nossa condição. O que significa ser um animal
consciente de si mesmo? A idéia é absurda, se não for
monstruosa. Significa saber que se é alimento para os vermes.
Este é o terror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência
de si mesmo, profundos sentimentos íntimos, uma torturante
ânsia íntima pela vida e pela auto-expressão – e, apesar de
tudo isso, morrer. Parece uma mistificação, que é o motivo
pelo qual certo tipo de homem cultural se rebela abertamente
contra a idéia de Deus. Que tipo de divindade iria criar um
alimento para vermes tão complexo e caprichoso? Divindades
cínicas, diziam os gregos, divindades que usam os tormentos
do homem para se divertirem.
12. Aquele que é educado pelo pavor (angústia) é educado pela
possibilidade (...) Quando essa pessoa, portanto, sai da escola
da possibilidade e sabe, com uma perfeição maior do que
aquela com que uma criança sabe o alfabeto, que não exige da
vida absolutamente nada e que o terror, a perdição e o
aniquilamento são vizinhos de todos os homens, e aprendeu a
lucrativa lição que cada terror que cause alarme poderá, no
momento seguinte, tornar-se uma realidade, irá interpretar a
realidade de maneira diferente. (...)
13. a vida é dura.