quinta-feira, 31 de agosto de 2006

RIMBAUD, L´angelot Maudit



O ANJINHO MALDITO


Portas brancas, tetos soturnos
Como nos domingos noturnos

No fim da vila, sem um ai,
A rua é branca, a noite cai.

Nas casas, estranhos arranjos:
Nas janelas, cortinas de anjos.

Mas, para um marco, nesse instante
Acorre mau, frio, hesitante

Anjinho negro que se incuba
Após comer demais jujuba.

Faz seu cocô: desaparece:
Mas esse vil cocô parece,

À santa lua que vagueia,
Uma cloaca de sangue cheia.

(Arthur Rimbaud, Album Zutique)


_____________________________________


CABEÇA DE FAUNO


Na ramagem, escrínio verde e informe,
Na ramagem, manchada de ouro e flores
Esplendorosas onde o beijo dorme,
Vivo e partindo insólitos lavores,

Um fauno aflora os olhos e o chavelho
E morde a rubra flor com dentes brancos.
Lisa e sangrante como um vinho velho
No bosque a boca explode em risos francos.

E quando então fugiu - como um esquilo -
Seu riso ainda em cada folha oscila;
Vê-se o pisco assustar o então tranqüilo
Beijo-de-ouro do Bosque, que se afila.

(Arthur Rimbaud, Poésies)

sábado, 26 de agosto de 2006

C. RONALD, Um Gigante entre nós



No final de Julho de 1993, C. Ronald por ocasião do lançamento de seu livro Cadeira de Édipo, tinha o comentário do escritor Péricles Prade: - É preciso termos reverência, estamos diante de uma Inteligência privilegiada, um Poeta como Carlos Ronald Schmidt, da estirpe de um Eliot, de um Cesar Vallejo, de um Pound ...

De lá para cá, C. Ronald continua sendo um Gigante entre a mediocridade poética que nos assombra muitas vezes. Pois em detrimento dos lucros fáceis os editores preferem publicar farsantes a publicar a verdadeira poesia.

Um Poeta tão fantástico como Ronald, mas afastado da grande mídia, parece ser absurdo, mas não é. A ele se junta, por exemplo, o maranhense Nauro Machado, que escreve há décadas e décadas, Poesia do mais puro malte.

Vilson Nascimento assim descreve C. Ronald em 1979 no Jornal de Santa Catarina:
(...) – Não há tema ou argumento em seus poemas. Tudo emerge de uma cósmica consciência. Se atentarmos, sem receio, sem censuras e preconceitos, veremos que através de seus poemas (colocados como verdadeiras sentenças ou aforismos poéticos), poderemos atingir toda a capacidade de vôo e alcance do espírito humano.
Sua maneira originalíssima de expressão, em estilo novo e penetrante, nos parece única em toda história de literatura. Igualmente único nos parece seu processo criativo, que presumimos desenvolvido com estranhos recursos intuitivos e/ou intelectivos. Ou até mesmo de um processo estranho a esses recursos. De um estágio mental ainda desconhecido e mais elevado.

___________________________________________________________


CANTO XIII


O que se prende no tempo
é do tempo a árvore crua um ídolo sem desejos
e os órfãos feitos de um osso apenas

Entre duas crianças amestradas entre duas
moléculas frondosas
de quem tirei os segredos


(do livro As origens, 1971)
______________________________________________________


Onde estará aquele velho álbum? A cena
das fiandeiras sob as trombetas que o fechavam.
Os ancestrais esperam... Seria um mero encontro
não houvesse a consciências das coisas deixadas para trás.
Pompéia desenterrada. O valor menos notado
também assombra a idade. Afinal, para que encontrarmos
humanos petrificados embaixo de um tempo
que só poderia existir dentro daquilo mesmo?
O amor não foi maior ou menor para eles. Ontem
ninguém autorizou essa exibição nem a de uma família
embaixo da ponte. Mas essa parte de pedra
que nunca podemos entender e que teríamos
depois de séculos pode ainda enterrar
todos os nossos sonhos num instante.


(do livro A Cadeira de Édipo, 1993)

_____________________________________________________________


51

o dote que se oferece no horror
dessa cidade é mais uma manobra difícil
das marés viradas em nossos pulsos
tal o esforço da visão da névoa

sonhos e vibrações técnicas estão aí
para tudo que seja atual
em frontes douradas pois ficou vazio
o que é pesado como o antigo absurdo

seu desejo excepcional ainda dentro
do medo com a mudança recente de vultos
interessados na superfície do arrependimento

mas chegou ao fim a fúria da indecência
e as unhas vistas entre os ossos podem matar
elas conhecem o que pode ser morto de novo


(do livro A Razão do Nada, 2001)

_________________________________________________________


98

há no pensador uma tragédia limitada
o diabo atira pelas frestas para acertar
na verdade na mãe opressora no pai incalculável
se alguma qualidade pode ser preferida
se os sentidos do filho excluírem a perda
na medida exata dos ancestrais
e reter a morte com outra igual haverá muita
precisão embora tal habilidade não restrinja
a estupidez no vazio e bastará uma brasa para
incendiar o mundo e sei que a miséria
aspirará o ar bem fundo pra estourar a razão


(do livro Os sempre, 2003).

sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Cioran, o Romeno que sabia francês (amargura e lucidez)



Em 1937, Cioran chega a Paris para fazer uma tese sobre Nietzsche que jamais concluiu, e passa dez anos escrevendo em romeno sem publicar nada. Decidido a mudar de língua, submete - em 1947 - à editora Gallimard o manuscrito de "Breviário de decomposição", que é aceito. No entanto, ele o reescreve quatro vezes, tentando vingar-se da observação de um de seus amigos franceses: "você escreve em um francês de meteco". Em 1951, o livro recebe o prestigioso prêmio Rivarol e, alguns anos depois, Saint-John Perse saúda Cioran como "o maior dos prosadores da língua francesa desde Valéry".

__________________________________________


SOBRE CERTAS SOLIDÕES

Há corações que Deus não poderia contemplar sem perder sua inocência. A tristeza aquém da criação: se o Criador houvesse penetrado antes no mundo teria comprometido seu equilíbrio. Quem crê que ainda pode morrer não conheceu certas solidões, nem o inevitável da imortalidade percebida em certas angústias ...A sorte dos modernos é haver localizado o inferno em nós: se tivéssemos conservado sua figura antiga, o medo, sustentado por dois mil anos de ameaças, nos teria petrificado. Não há pavores que não estejam transpostos para o subjetivo: a psicologia é nossa salvação, nosso subterfúgio. Antigamente, pensou-se que este mundo havia surgido de um bocejo do diabo: hoje, só é erro dos sentidos, preconceito do espírito, vício do sentimento. Sabemos a que nos ater ante a visão do Juízo Final de Santa Hildegarda ou ante a do inferno de Santa Teresa: o sublime - seja o do horror ou o do da elevação - está classificado em qualquer tratado de doenças mentais. E embora nossos males nos sejam conhecidos, nem por isso estamos livres de visões, mas já cremos nelas. Versados na química dos mistérios, explicamos tudo até nossas lágrimas. Algo permanece, porém, inexplicável: se a alma é tão pouca coisa, de onde vem nosso sentimento de solidão? Que espaço ocupa? E como substitui, subitamente, a imensa realidade desvanecida?

(texto de Breviário de Decomposição)

Sylvia Plath - Clausura e papoulas



Papoulas em Julho

Pequenas papoulas, pequenas chamas do inferno,
Vocês fazem mal?

Vocês se mexem. Não posso tocá-las.
Meto as mãos entre as chamas. Nada me queima.

E me cansa ficar aqui olhando
Vocês se mexendo assim, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.

Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!

Há fumos que não posso tocar.
Onde estão seus ópios, suas cápsulas que enjoam?

Se eu pudesse sangrar, ou dormir! –
Se minha boca se unisse a essa ferida!

Ou se seus licores me sedassem, nessa cápsula de vidro.
Entorpecendo e acalmando.

Mas sem cor. Incolor.

(Sylvia Plath, tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça)

Poemas do Livro AcqualuV


(foto do Morro das Pedras, Ilha de Santa Catarina)


no morro
das pedras ainda
se vê a mão
estendida e carcomida
foram as areias
jorradas
das trevas de dentro.
um mento
estreito, o oco
fraco a ressoar
o sino perdido
a faca final.

***************************************************

lado a lado
encurralado

a maçã branca
a vela morta

os lábios
fugindo de sal


(Anderson Dantas, do livro AcqualuV - poemas)

domingo, 13 de agosto de 2006

Paul Celan (Austríaco ou Romeno?!)



A POESIA DO EXÍLIO


UM JUDEU, nascido na Romênia, que escreveu em alemão e viveu na França. Vítima da Segunda Guerra Mundial, sobrevivente dos campos de concentração, suicida antes dos cinqüenta anos. Paul Celan foi um poeta do exílio, um forasteiro mesmo para a língua de seus próprios poemas, e se sua vida foi exemplar em sua dor, um paradigma da destruição e da confusão na Europa em meados deste século, sua poesia é desafiadoramente idiossincrática, sempre e absolutamente sua. Na Alemanha, é considerado equivalentemente a Rilke e a Trakl, o herdeiro do lirismo metafísico de Hölderlin, e em outros lugares sua obra goza de uma estima semelhante, provocando afirmações como o recente comentário de George Steiner de que Celan é “quase certamente o maior poeta europeu do período pós-1945”. Ao mesmo tempo, Celan é um poeta terrivelmente difícil, tanto denso como obscuro. Ele exige tanto do leitor e, em suas últimas obras, suas elocuções são tão aforísticas, que é quase impossível apreender todo seu sentido mesmo após várias leituras. Furiosamente inteligente, impelido por uma força lingüística estonteante, os poemas de Celan parecem explodir na página, e conhecê-los pela primeira vez é um evento memorável.

(Paul Auster, fragmento de ensaio)

**********************************************************************

JÁ NÃO É MAIS
este
peso às vezes
carregado contigo
até a hora. É
outro.

É a carga que detém o vazio,
vazio que con-
tigo iria.
Não tem, como tu, um nome. Talvez
sejam a mesma coisa. Talvez
um dia também me chames
assim.

***********************************************************************

IR-AO-FUNDO,
a palavra que lemos.
Os anos, as palavras desde então.
Somos sempre os mesmos.

Sabes, o espaço é infinito,
sabes, não precisas, voar,
sabes, o que se escreveu em teu olho
aprofunda-nos o fundo.

************************************************************************

QUANDO ME ABANDONEI EM TI,
eras pensamento,

algo
murmura entre nós dois:
do mundo a primeira
das últimas
asas,

em mim cresce
a pele sobre
tempestuosa
boca,

tu
não chegas
até
ti.


(Paul Celan, traduções de Claudia Cavalcanti)

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Ingeborg Bachmann (die gestundete zeit)



O TEMPO APRAZADO


Vem aí dias difíceis.
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefeceram ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoceiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.

Do outro lado enterra-se a amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe o silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.

Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros.

Vem aí dias difíceis.

Total de visualizações de página