sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Ezra Pound: scabrous arse-hole



(fragmentos do Canto XV)

O melífluo, deitado em glucose,
o pomposo em rama de algodão
com um pivete como as gorduras em Grasse,
o eminente escabroso olho do cu, cagando moscas,
retumbando com imperialismo,
urinol último, estrumeira, charco de mijo sem cloaca,
...... r menos tumultuoso, ....... Episcopus
...... sis,
de cabeça para baixo, atarraxada na lavadura,
as pernas oscilando e postulentas,
um protector de partes clerical suspenso para trás sobre
[o umbigo

o preservativo cheio de baratas,
tatuagens em volta do ânus,
e um círculo de damas jogadoras de golfe em roda dele.
os violentos corajosos
cortando-se com facas,
os covardes incitadores à violência
..... n e ....... h comidos por gorgulhos,
........ ll como um aborto inchado,
a besta das cem patas, USURA
e a lavadura cheia de mesureiros,
fazendo vénias aos senhores do sítio,
explicando as vantagens dele,
e os laudatores temporis acti
raclamando que a me ... costumava ser mais preta e mais rica
e os fabianos exigindo a petrificação da putrefação,
por uma caca nova em losangos,
os conservadores cavaqueando,
distinguiam-se por polainas de carne humana de bairro de lata.
e os apadrinhados num grandioso círculo,
lamentando-se de insuficiente atenção,
a procura sem fim, contraprotesto pelo folar que não veio
o litigioso,
um suor verde de fel, os proprietários das notícias, ... s
o anónimo

(tradução de Luísa MLQ Campos e Daniel Pearlman)

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FIGURA DE DANÇA

- para as bodas em Cananéia -

De olhos escuros,
Ó mulher de meus sonhos,
De sândalo e marfim,
Não há nenhuma igual entre as dançarinas,
Nenhuma com pés rápidos.

Não te encontrarei nas tendas
Na escuridão amortecida.
Não te encontrarei junto à nascente
Entre as mulheres com seus cântaros.

Como um renovo sob a cortiça são teus braços;
Tua face é como um rio com luzes.

Alvas como a amêndoa são tuas espáduas;
Como amêndoas recentes desnudadas da casca.
Não te defendem com eunucos
Nem com barras de cobre.

Ouro-turquesa e prata estão no lugar do teu repouso.
Uma escura veste, com fios de ouro em frisos
Colheste ao teu redor,
Ó Nathat-Ikanaie, "Árvore-ao-pé-do-rio."

Como um regato entre o junco são tuas mãos sobre mim;
Teus dedos ma gélida corrente.

Tuas servas são tão alvas como seixos.
Ah! sua música ao teu redor.

Não há nenhuma igual entre as dançarinas,
Nenhuma com pés rápidos.

(tradução de Augusto de Campos)



segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Haroldo de Campos: entre Vênus e Minerva



poema qohelético 2: elogio da térmita

os cupins se apoderaram da biblioteca
ouço o seu áfono rumor
o canto zero das térmitas
os homens desertaram a biblioteca
palavras transformadas em papel
os cupins ocupam o lugar dos homens
gulosos de papel peritos em celulose
o orgulho dos homens se abate madeira roída

tudo é vão

a lepra dos cupins corrói o papel os livros
o gorgulho mina o orgulho
assim ficaremos cadáveres verminosos

escrevo este elogio da térmita

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o poeta ezra pound desce aos infernos


não para o limbo
dos que jamais foram vivos
nem mesmo
para o purgatório dos que esperam
mas para o inferno
dos que perseveram no erro
apesar de alguma contrição
tardia e da silente senectude
- diretamente com retitude -
o velho ez
já fantasma de si mesmo

e em tanta danação
quanto fulgor de paraíso

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mimnermo
tís dè bíos ...


que vida sem o consolo
de afrodite - ouro e crisólitos!
melhor morrer quando não mais
o mel do prazer a cripta
do amor furtivo a cama
me disserem: ama!

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a verdade


a verdade é o
delírio báquico:
nela nenhum elo
escapa à embriaguez
e como cada
um deles
ao se-
parar-se i-
mediatamente já se dis-
solve
ela é
igualmente a
paz
translúcida e
singela

sábado, 16 de setembro de 2006

SAMUEL BECKETT, A Companhia do Vazio


Quando estás perturbado, as contas simples são um conforto para ti. Um refúgio. No fim, chegas a sete metros cúbicos, aproximadamente. Mesmo imobilizado na escuridão intemporal, achas consolo nos números. Partes de um certo ritmo cardíaco e calculas quantas batidas por dia. Por semana. Por mês. Por ano. E calculando um certo tempo de vida, por toda a vida. Até a última batida. Mas, naquele momento, com pouco mais de setenta bilhões de batidas para trás, sentas-te na pequena cabana de verão, avaliando a cubagem. Sete metros cúbicos, aproximadamente. Por qualquer razão, isso te parece improvável e refazes as contas. Mas não tinhas ido muito longe, quando ouves seus passos leves. Leves para uma mulher daquela altura. Com o pulso acelerado abres os olhos e após um momento que parece uma eternidade, seu rosto surge à janela. Nessa posição, a palidez natural que tanto admiras quase toda azul, como, sem dúvida, tua palidez deve parecer-lhe completamente azul. Pois a palidez natural é uma característica que ambos têm em comum. Os lábios violeta não retribuem teu sorriso. Como essa janela está à altura de teus olhos, do lugar onde te sentas, e o chão, de qualquer forma, quase no mesmo nível do terreno do lado de fora, não podes deixar de imaginar se ela terá caído de joelhos. Sabendo, por experiência, que a altura e comprimento que têm em comum é a soma de segmentos iguais. Pois, quando de pé ou deitados, colam rosto com rosto, depois os joelhos se encontram, os púbis, e os cabelos das duas cabeças se misturam. Pode-se deduzir daí que a perda de altura do corpo sentado é a mesma que a daquele que se ajoelha? Nesse ponto, partindo do princípio de que a altura do assento é regulável, como no caso de certos tamboretes de piano, fechas os olhos para medir com uma medida mental e comparar o primeiro e segundo segmentos, isto é, da sola dos pés à rótula e dali à bacia. Como te entregavas, em movimento ou repouso, com os olhos cerrados em tuas horas de vigília! De dia e de noite. Àquela escuridão perfeita. Àquela luz sem sombras. Simplesmente partir. Ou ficar como agora. Surge uma única perna. Vista de cima. Separas os segmentos e os colocas lado a lado. É como quase presumiste. A parte superior é mais longa e a perda de altura de uma pessoa sentada é maior quando o assento está ao nível dos joelhos. Deixas os pedaços jogados por ali e abres os olhos, para encontrá-la sentada diante de ti. Tudo absolutamente imóvel. Os lábios rubros não retribuem teu sorriso. Teu olhar desce a seus seios. Não os recordavas tão grandes. Ao ventre. A mesma impressão. Que se mistura com a do ventre de teu pai forçando o cós desabotoado. Será possível que esteja grávida sem que tenhas, ao menos, pedido sua mão? Voltas-te para ti mesmo. Ela também fechou os olhos, advinhas. Assim ficam, sentados face a face, na pequena casa de verão. Com os olhos fechados e as mãos tocando o púbis um do outro. Naquela luz irisada. Naquele silêncio total


(Samuel Beckett, in The Company)

Állex Leila, a Herdeira


















Baile
por Állex Leilla

As coisas brincavam na sala
e eu não sabia o que eram;
dançavam na copa,
também na varanda,
no telhado também.
Uma coisa eu podia: ver.
E não havia outras dimensões.
Eram formas e movimentos,
sons, circunferências.
Só não tinha ali uma coisa: o saber.

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Vísceras [1]


Do pouco que me lembro da vida, não há muito o que destacar.
De madrugada a cidade ficava mais estranha ainda e da janela do meu quarto, na mais absurda solidão, eu podia ver uma claridade piscando atrás dos prédios e mesmo sabendo se tratar de uma antena de rádio ou de estação de TV, pensava desconexo: uma nave espacial por certo quer descer.
Porque talvez me fizesse bem pensar assim , não sei. Que mais poderia ser?
A dor incontrolável da perda de dentes. Os meus dentes cediam à uma força desconhecida e caíam ou inchavam sem piedade. O nariz sangrava, catarro grosso e complicado me saía pela boca, havia não sei quantos vírus nos pulmões.
Os lençóis imundos e suados, ocultando pra sempre os doces cheiros do tempo em que eram lavados: de lavanda e sabão em pó.
Meu movimento da cama pro banheiro, do banheiro pra cama, arrastando dores que eu não poderia realmente descrever.
A necessidade terrível de um copo de chocolate quente, fumegante, pra escaldar a língua e expulsar o podre dos dentes, das gengivas, do estômago. E cravo, cravos pra mastigar e desafogar a garganta, recuperar minha voz desaparecida, minha voz morta, enterrada dentro de mim.
Às vezes, havia estrelas no céu que me assustavam. Eu as encarava e com o passar dos segundos ia vendo-as se perderem sem explicação. Não caíam nem sumiam atrás de nuvens, simplesmente iam diminuindo até fugirem de vez e, nem mesmo com os óculos, eu as conseguia ver.
A janela ficava sempre aberta. E mesmo quando tinha chuva brava, não fechava nem me afastava, tomava-a inteirinha, os pingos entrando pelos poros da pele, piorando meu estado, mas me alegrando em parte.
Um olhar semimorto no espelho.
A pele manchada de marrom, pontinhos escuros que cresciam de um dia pro outro. Meu corpo descamando. Descarnando.
Ninguém. Ninguém. Ninguém.
A comida acabava aos poucos. Eu comia tão mínimo, umas migalhas de manhã, que duravam até o anoitecer. Mas mesmo assim acabava, ainda que todo o meu dinheiro, o último que pude ajuntar no tempo em que trabalhava, estivesse todinho lá, empregado nela, na maldita comida que minava.
Acabava e restava somente água na torneira.
Ninguém cortou a água nem me despejou, mas cortaram a luz e o telefone.
Num dia muito difícil, até quis pedir ajuda. Mas não podia mais andar e gritando não adiantava, a voz se tornara tão mínima que sumia logo debaixo do barulho lá de fora. E era, inclusive, tempo de sons pesados: caminhões, buzinas, gritos, falares ríspidos, carnaval, heavy, grunge, mangue-beat, apitos, ônibus, aparelhos comuns à construção civil, rádios AM/FM o dia inteiro, televisores na Globo, no SBT, na MTV, a cidade, enfim, toda ela, lá fora, bem longe do meu alcance.
No último momento de lucidez – uma lucidez embaçada, é verdade, mas a última –, me lembrei de uns versos de uma canção de infância:

Havia um patinho que vivia a nadar
saiu de dentro d’água e se pôs a cantar:
quá quá quá quá quá quá quá quá quá...
lá vem a cozinheira com o seu facão na mão
o pobre do patinho foi parar lá no fogão:
tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu...

Não sei se era da minha infância, não sei se era coisa vista ou ouvida de outrem e guardada dentro de mim. Mas tentei, com tanta força, tão irresponsável violência, me lembrar dos últimos versos que completavam a canção, que, sem querer, ou querendo demais lá no pântano desconhecido de mim, BUM!, tudo se arrebentou nas têmporas, e eu fui, num segundo e de uma só vez, todo todo pelos ares.


Állex Leilla

[1] Publicado na Revista Iararana (Salvador/BA) em 1998.

terça-feira, 12 de setembro de 2006

NAURO MACHADO, O Netuno do Maranhão


(foto da Chapada das Mesas, MA)

AMPULHETA

Eis que já te acossa
o despojo de tudo.
Teu tempo é por demais
saciedade.

(Gasta, podre maçã,
desfaz-se no chão idêntico.)

Eternidade,
usufruto do tempo:
eis que te devora
o ludíbrio de vida.

(Do Frustrado Órfico, 1963)


O PÃO DOS MORTOS

(Deixai que os mortos
enterrem seus mortos.)

Eu, por mais que faça,
desenterro a graça
dos que pedem paz.
Eu, que lhes nego - e ao osso,
o eterno repouso

(a eles, sombra da água
que em nada deságua
e só pedem que
lhes deixemos ser
branco esquecimento);

eu, que lhes sepulto
- duas vezes - o vulto,
dando-os a mim
e dando-lhes fim,
eu, por mais que faça:

dou-lhes pão e desgraça.

(Ouro Noturno, 1965)


MATILHA

Vocábulo onde me faço
ladrão de uma ladra loba:
pudesse ser eu o regaço
que se nutre da tua boca
crepuscular, ladra e loba,
loba faminta que ladra
por sobre a orgânica estopa
que me cobre, enterra e tapa!

(A Vigésima Jaula, 1974)


MASMORRA DIDÁTICA

Poesia: idade-média
descacando a pele
da criatura humana,
para deixá-lo em osso
até o final dos tempos.

Invenção de verbo,
a poesia fede
a solidão humana
escovando o hálito
todas as manhãs.

(Por não ter um dente
ou residir em boca,
o dia se eterniza
sem as nossas fezes
e a nossa saliva.)

Poesia: idade-média,
idade da pedra,
idade de Adão.
Teu mundo amanhece
diariamente.

(Masmorra Didática, 1979)

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

HILDA HILST, A Dama Rara do Profundo



ODE FRAGMENTÁRIA (1961)

(Heróicas)


Morremos sempre.
O que nos mata
São as coisas nascendo:
Hastes e raízes inventadas
E sem querer e por tudo se estendendo
Rondando a minha
Subindo vossa escada.
Presenças penetrando
Na sacada.

Invasões urdindo
Tramas lentas.

Insetos invisíveis
Nas muradas.

Eis o meu quarto agora:
Cinza e lava.
Eis-me nos quatro cantos
(Morte inglória)
Morrendo pelos olhos da memória.
Aproximam-se.
E libertos de presença da carne
Se entreolham.

O teu nascer constante
Traz castigo.
Os teus ressuscitares
Serão prantos.

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TRAJETÓRIA POÉTICA DO SER (I)
(1963-1966)

11.

Cavalo, halo de memória, guardo-te no peito
Sobre esta grande artéria
Fonte de vida e alento que sustenta
Amor de madurez e adolescência.

Cantando-te sou teu corpo e tua nudez.
E ombro a ombro seguimos a alameda
Casco de dor num caminho de sol
E labareda, indivisível água
Obrigando-me a ver o que tu vês.

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ROTEIRO DO SILÊNCIO
(1959)


Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.

Os amantes no quarto
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido
Quero que saibam:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.

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SOBRE A TUA GRANDE FACE


Hoje te canto e depois no pó que hei de ser
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
Quantas me darás para o meu outra vez amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,
Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivo
Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem
Teus pasto que é o meu verso orvalhado de tintas
E de um verde negro teu casco e os areais
Onde me pisas fundo. Hoje te canto
E depois emudeço se te alcanço. E juntos
Vamos tingir o espaço. De luzes. De sangue.
De escarlate.

sábado, 2 de setembro de 2006

Jim Morrison, o Poeta-lagarto do Rock



Chacal, farejamos a caravana dos sobreviventes.
Ceifa sangrenta nos campos de batalha.
Nenhum cadáver sacia nosso magro estômago.
A fome põe-nos na pista do cheiro.
Estrangeiro, viajante,
olha-nos nos olhos e traduz
o horrível latido dos cães do passado.

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Ave marinha murmúrio marinho
Rumor de sismo
Incensório de fogos-fátuos
Clamor das vagas
Estrada em serpentina
Até aos subterrâneos chineses
Habitáculo do vento
Deus do luto

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Cure blindness with a whore´s spittle.

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(Jim Morrison, in The Lords in The News Creatures)

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