quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

SER ESTRANHO



SER ESTRANHO


(Letra: Casa Branca e Gandhula
Intérprete: Jessé)


Dentro de mim aparece as vezes
Uma mulher que me vive em segredo
Um ser estranho que até tenho medo
Que algum dia me expulse de mim

É mais doida, que a própria ferida
É mais calada que o próprio silencio
E tem a idade em que nada é proibido
Vive comigo dentro de mim

Corre pra dentro de mim
Como se eu fosse uma espécie de abrigo
Fala comigo tal qual a um amigo
E me aconselha a fazer tudo aquilo que a coragem não deixa fazer
Quando eu não faço ela faz
Quando eu não quero ela é audaz

Quando se zanga consegue o que quer
Às vezes me diz que não quer ser mulher
Mas sente falta de um homem qualquer
Essa mulher grita dentro de mim quando calo
Essa mulher chora dentro de mim quando canto

Essa mulher ri do meu sofrimento se amo
Essa mulher sai de dentro mim quando sonho
Essa mulher morre dentro de mim quando grito
Essa mulher me da sua mão quando sofro

Ela é tão "eu" que as vezes não sei quem é ela
É tão só que as vezes não sei se sou eu
Ela é a vida, é a morte doida
É doída como um corte no fundo do meu coração, coração, coração

Dentro de mim aparece em segredo
Uma mulher quem me vive às vezes
Um ser estranho que até tenho medo
Algum dia me expulse de mim
E algum dia me expulse de mim

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

JULES LAFORGUE escreveu e T.S. ELIOT imitou




















MEDIOCRIDADE




No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saudam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o céu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.




(Jules Laforgue – Litanias da Lua, tradução de Régis Bonvicino)







 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
V. O que Disse o Trovão



(trechos)



       Após a rubra luz do archote sobre as faces suadas
Após o gelado silêncio nos jardins
Após a agonia em regiões pedregosas
O clamor e a súplica
Cárcere palácio reverberação
Do trovão primaveril sobre longínquas montanhas
Aquele que vivia agora já não vive
E nós que então vivíamos agora agonizamos
Com um pouco de resignação.

      Aqui não há água, mas apenas rocha
Rocha. Água nenhuma. E o caminho arenoso
O coleante caminho que sobe entre as montanhas
Que são montanhas de rocha inaquosa
Se houvesse água por aqui, nos deteríamos a bebê-la
Não se pode parar ou pensar em meio às rochas
Seco o suor nos poros e os pés postos na areia
Se aqui houvesse água em meio às rochas
Montanha morta, boca de dentes cariados que já não pode cuspir
Aqui não se fica de pé e ninguém se deita ou senta
Nem o silêncio vibra nas montanhas
Apenas o áspero e seco trovão sem chuva
Sequer a solidão floresce nas montanhas
Apenas rubras faces taciturnas que escarnecem e rosnam
A espreitar nas portas de casebres calcinados
                                       Se houvesse água por aqui

       E não rocha
       Se aqui houvesse rocha
       Que água também fosse
       E água
       Uma nascente
       Uma poça entre as rochas
       Se ao menos aqui se ouvisse um sussurro de água




(T. S. Eliot – A Terra Desolada, tradução de Ivan Junqueira)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

o universo inteiro é um homem sentado















áspera
e nunca-espera
de barcos e pescadores

(ainda lembro
                     da tartaruga
                                      morta)

o salobro canto
engasgado na garganta
o corte feio
abrindo a carne

o universo inteiro
é um homem
sentado

via espessa e líquida
de favo escuro
e inscrito:

manhã
nada mais a completa
tudo se
repete:


(Ilha, Pântano do Sul, 05 Dez 2009, 00:36)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

OPUS INFERNAL e 2012




OPUS INFERNAL e 2012



O ANO é 2009. 19 de Novembro. Por volta das 16 horas, começam os sinais. Ventanias, trovões, intensa chuva, quedas de árvore e de postes, inundações, desabamentos, destelhamentos. Na Ilha da Magia, a terra das bruxas de Cascaes, a antiga Desterro, parece que vem abaixo.


A nova onda é a fatal inversão polar, prevista numa grande catástrofe em 2012. Pois eu a subverto. Eu reinvento a nova ordem. A revelação assintomática da INVERSÃO INFERNAL.



(Fotos do Lançamento do Livro OPUS INFERNAL e a Canção Branca, iniciado pontualmente às 19h30.
As imagens foram lindamente projetadas por Dienífer Bartnik)




terça-feira, 13 de outubro de 2009

TRÊS ANGÚSTIAS (à Francesa)
















ANGOISSE



Não vim domar teu corpo esta noite, ó cadela
Que encerras os pecados de um povo, ou cavar
Em teus cabelos torpes a triste procela
No incurável fastio em meu beijo a vazar:

Busco em teu leito o sono atroz sem devaneios
Pairando sob ignotas telas do remorso,
E que possas gozar após negros enleios,
Tu que acima do nada sabes mais que os mortos:

Pois o Vício, a roer minha nata nobreza,
Tal como a ti marcou-me de esterilidade,
Mas enquanto teu seio de pedra é cidade

De um coração que crime algum fere como presas,
Pálido, fujo, nulo, envolto em meu sudário,
Com medo de morrer pois durmo solitário.



(Mallarmé, tradução de José Lino Grünewald)




















L´ANGOISSE



Nada em ti me comove, Natureza, nem
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
Nem pastorais do Sul, com o seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poentes, além.

Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções,
Da poesia, dos templos e das espirais
Lançadas para o céu vazio pelas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.

Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a quem chamam Amor.

Já farta de existir, com medo de morrer,
Como um brigue perdido entre as ondas do mar,
A minha alma persegue um naufrágio maior.



(Verlaine, tradução de Fernando Pinto do Amaral)




ANGOISSE


     Será possível que Ela me faça perdoar as ambições
continuamente esmagadas, - que um fim cômodo compense
as idades da indigência, - que um dia de êxito nos adormeça
sobre a vergonha de nossa fatal inabilidade.

     (Ó palmas! diamante! – Amor! força! – mais alto que
todas as alegrias e glórias! – de qualquer modo, em toda parte,
- demônio, deus – Juventude desta criatura; eu!)

     Que acidentes de magia científica e movimentos de
fraternidade social sejam prezados como restituição progressiva
da franqueza primeira? ...

     Mas a Vampiro que nos torna gentis ordena que nos divirtamos
com o que ela nos deixa, ou que então sejamos mais esquisitos.

     Rolar até as feridas, no ar fatigante e no mar; até os
suplícios, no silêncio das águas e do ar assassinos; até as torturas
que riem em seu silêncio atrozmente encapelado.



(Rimbaud, tradução de Ledo Ivo)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

aqueles dias















aqueles dias



Ao irmão.

aqueles dias
          de luta
                   de luto
                             (de vinho e chá escuro)


eu poderia te dizer um único verso:

fumo de tabaco rói o ar.

antes eu,
          e dentro batia
                  no peito a rugir; filhote
                                               de leão manso

dizem a cabeça pende
          e hoje, irmão,
                   na caçada leão de juba
                                       (juba grisalha e rala)

um poema, uma navalha
          em lugar de uma carta
                  um sonho mesmo às escuras
                                     e o som das metralhas

onde somente a rugir
          ventania sul implacável
                  intermináveis chuvas a molhar os caminhos
                                             tigre cerúleo

e quando a me lembrar
          de ti, irmão, vinha-me
                  ira, Rússia, camponeses, vermelho.

meu irmão,
          nossos irmãos, irmão de sangue
                  irmãos russos se esvaindo
                                       como sementes leves

Maiakóvski, Marina, Iessiênin
          suicidados poetas na margem dos melífluos enxurros
                  tu me dissestes: - esta noite eu corri
                                       com os animais pela madrugada

me salvastes a vida, irmão.

...............................................................................

aqueles dias de luta
          de luto
               de pó e sangue escuro


diziam leão e tigre

rugidos esquecidos, extintos.

Anos
         de servidão e de miséria
comandavam
              nossa bandeira vermelha.


aqueles dias, irmão

Neve dos tempos.



(Ilha, 18/09/09, 14h10 e chove muito)

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Cena 11 - SKINNERBOX





imagem.              sucessões de corpos caindo              soturnez.
queda                               violência                           espanto.

Aleksiéi Krutchônikh (caderno russo IV)

















FOME


Lavouras trigosas viraram lenda antiga ...
Tulhas de cereal estalam ressecadas
Campoentos madeireses transformados em tílias
Em lascas as maçãs das faces – magras ...

..........................................................

Na isbá, teto de furos e fumaça,
Cinco filhotes louro-palha
Esgazeiam olhos de pássaro,
Hoje sobre a mesa fumegam tigelas fartas! ...

- Comam deste guisado macio,
Mas comam tudo, sem deixar vestígio,
Senão aquele Silvano ruivo
(Cochila como um carneiro junto à porta do vizinho)
Vai carregar mamãe de mansinho ...

A mãe falou e saiu pé ante pé ...
As crianças rilhavam famintas.
De repente no caldeirão de viés
Viram braços boiando com tripas.

- Uh! Oh! – berram todas para a porta,
E agora em coro fazem: Ah!
A mãe lá estava – morta,
Pescoço azul enroscado em estopa!...

As crianças correram até a escarpa
- Carcaça semi-rota atrás chuchava sopa –
Sinal-da-cruz, e como lebres na água
Se atiram para braços que abraçam ...

O fato se passou perto da Páscoa ...
O sangue do assassinado voltado para cima
Pedia aos homens penitência e prece.
Junto ao muro do reino celeste
A alma da enforcada se reclina ...



(Aleksiéi Krutchônikh, 1920 – tradução de Haroldo de Campos e
Boris Schnaiderman)

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Abbey Lincoln, A Grande Diva do Jazz

PERSE e a Parede




















A PAREDE


        O laço da parede está em frente, para conjurar o círculo de
teu sonho.
        Mas a imagem solta um grito.
        A cabeça contra o descanso da poltrona gorda, examinas os
dentes com a língua: o gosto de gorduras e molhos infecciona-te as
gengivas.
        E sonhas com as nuvens puras sobre tua ilha, quando a
aurora verde se elucida no seio das águas misteriosas.
        ... É o suor das seivas em exílio, o unto amargo das plantas
de síliquas, a acre insinuação das mangueiras carnudas e o ácido
deleite de certa substância negra nas vagens.
        É o mel silvestre das formigas nas galerias da árvore morta.
        É um sabor de fruto verde, que acidula a aurora que bebes; o
ar leitoso enriquecido com o sal dos alísios ...
        Alegria! ó alegria desatada nas alturas do céu! Os panos
puros resplandecem, os adros invisíveis estão semeados de ervas e
as verdes delícias da terra penteiam-se ao século de um longo dia.


(Saint-John Perse, Imagens a Crusoé)

domingo, 13 de setembro de 2009

sábado, 5 de setembro de 2009

Shadow on the sun - Audioslave



SHADOW ON THE SUN

Uma vez eu pensei em descarregar o teu peso
E te deixar naquele lugar.
Você acreditava que eu era capaz
Você já viu acontecer antes.

Eu poderia ler os teus pensamentos
E dizer o que você via
E nunca dizer uma só palavra.
Agora tudo isso está "morto e enterrado"
Para nunca mais voltar...

Eu posso te dizer porquê as pessoas morrem sozinhas
Eu posso te dizer que eu sou uma sombra no sol

Olhando para a perda,
Procurando as causas
Mas nunca tem a certeza.
Não há nada além de um buraco
Para se viver sem alma
E não há nada para aprender...

Eu posso te dizer porquê as pessoas enlouquecem,
Eu posso te mostrar como você também pode enlouquecer,
Eu posso te dizer porquê o fim nunca chegará,
Eu posso te dizer que eu sou uma sombra no sol.

Vultos de todos os tamanhos se movem pelos meus olhos
As portas em minha cabeça estão trancadas por dentro
Cada faísca acende uma vela
Em memória daquele que vive sob a minha pele

Eu posso te dizer porquê as pessoas enlouquecem,
Eu posso te mostrar como você também pode enlouquecer,
Eu posso te dizer porquê o fim nunca chegará,
Eu posso te dizer que eu sou uma sombra no sol.

O FALCÃO, por HOPKINS



THE WINDHOVER


Eis que avistei esta manhã o amado da manhã, delfim do
            reino
        da luz-do-dia , Falcão arrebatado pela aurora
           mosqueada, em seu cavalgar
No ar encapelado que, sob ele, firme se alisa, e ao galgar
Tanta altura, como se eleva espirilando, preso às rédeas de
           uma asa ondulante,
Em seu êxtase! E então lá vai, lá vai balouçante
Qual pé de patim macio desliza em arco retesado; o
           arremesso, o planar
Afrontam a ventania. Meu coração escondido, em sigilo,
Batia pelo pássaro – o alcance, a mestria daquilo!

Beleza bruta, bravura, ação, oh! altanaria, plumas,
            amplidão –
Aqui concentrai-vos! E a fagulha que então de ti irromper,
            um bilhão
De vezes mais amorável, mais temível, Ó meu paladino!

Nem surpreende: ao arar paciente, o arado lá sob o sulco
            contínuo
Faísca; e o borralho azul-pálido, ah! meu tesouro,
Ao tombar atrita-se, e abre-se em talhos vermelho-e-ouro.


(Gerard Manley Hopkins, 1844-1889)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

anfiteatro




















(ao pai.
e tu, sendo pai
é o pai de todas as coisas)



EU SONHEI
em ti,
meu pai.

na penumbra
senti o hálito
espirilado
do fumo

não colhi a lenha
para acender
o fogo
de nosso gelo hirto

e para a casa velha
não apanhei
nenhum junco
carcomido por ratos

não catei
nenhum fruto
não icei balde
para o poço
e água morta

EU ME PERDI
meu pai
em cega furna
e expiação.


(Ilha de SC, 11h30)

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Ave Lúcifer



ave, lúcifer

as maçãs
envolvem os corpos nus
nesse rio que corre
em veias mansas dentro de mim

anjos e arcanjos
não pousam neste éden infernal
e a flecha do selvagem
matou mil aves no ar

quieta, a serpente se enrola
nos seus pés
é lúcifer da floresta
que tenta me abraçar

vem amor
que um paraíso
num abraço amigo
sorrirá para nós sem ninguém nos ver

prometa
meu amor macio
como uma flor cheia de mel
pra te embriagar, sem ninguém nos ver

tragam uvas negras
tragam festas e flores
tragam copos e dores
tragam incensos odores

mas, tragam lúcifer pra mim
em uma bandeja pra mim

sábado, 29 de agosto de 2009

Inferno: STRINDBERG


VII
TRECHOS DE MEU DIÁRIO
_____________________


Leio um delicioso panfleto, A alegria de morrer, que me dá o desejo de deixar este mundo. Para explorar a fronteira entre a vida e a morte, deito-me na cama, destapo o frasco de cianureto de potássio, que desprende seu odor mortal. Ei-lo que se aproxima de mim, o homem da foice: é delicado e tem ares voluptuosos; mas, no último instante, sempre chega alguém ou acontece alguma coisa de imprevisto: o garçom do hotel sob um pretexto qualquer, uma vespa que entra pela janela.
As potências recusam-me a única alegria, e submeto-me diante de sua vontade.

Nos começos de Julho, o hotel se esvazia com os estudantes que partem em férias.
Eis por que a chegada de um estrangeiro, no quarto vizinho, excita-me a curiosidade. O desconhecido não fala nunca; parece sempre ocupado em escrever, por trás da divisória que nos separa. Numa atitude estranha, recua todas as vezes que eu aproximo minha cadeira da parede; repete meus movimentos, como se quisesse me irritar com isso.
A coisa continua por três dias. Depois, percebo que, quando vou me deitar, alguém se deita no quarto que está do lado de minha mesa; mas, estando deitado, ouço-o levantar-se e ir para o outro quarto, ocupando o leito vizinho do meu. Escuto-o estendido paralelamente a mim: folheia um livro, depois apaga a lâmpada, respira, vira de lado e dorme.
Um silêncio absoluto reina no quarto do lado oposto. Logo, ele ocupa ambos os quartos. É desagradável ser assediado pelos dois lados.

Só, inteiramente só, janto com o prato trazido numa bandeja a meu quarto, e como tão pouco que o garçom se compadece de mim. Há uma semana que não ouço minha própria voz, e, por falta de exercício, o som começa a desaparecer. Estou inteiramente sem dinheiro: fazem-me falta os cigarros e os selos postais.

Agora, sentado na poltrona, abro a Bíblia e leio ao acaso: “Não refletem nem consideram, nem têm o bom senso de dizer: Eu queimei no fogo metade desta madeira, e cozi pães sobre as brasas; cozi carnes e comi-as, e então de seu resto hei de fazer um ídolo? Hei de prostrar-me diante de uma árvore? Uma parte deste pau está já feita em cinza; sem embargo disso, o seu coração insensato adorou a outra parte, e ele não salvará a sua alma, dizendo: É sem dúvida uma mentira o que está na minha mão.
... Eis que diz o Senhor, que te remiu e que te formou no ventre da tua mãe: Eu sou o Senhor, que faço todas as coisas, que só por mim estendi os céus, e firmei a terra, sem que ninguém me ajudasse. Eu faço baldar os prognósticos dos adivinhos, e torno furiosos os agoureiros. Eu faço recuar os sábios, e converto sua ciência em loucura”.

(August Strindberg, Inferno)

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Walt Whitman, fragmentos do mar e eu


XXII
_______________


Tu mar! Também a ti me rendo – adivinho o teu sentido,
Da praia observo os teus dedos curvos e convidativos,
Creio que te recusas a regressar sem me seres em ti,
Devemos estar juntos algum tempo, dispo-me, leva-me depressa para longe
da terra,
Aconchega-me, suavemente, embala-me na tua sonolenta ondulação,
Bate-me com a tua amorosa água, posso retribuir-te.

Mar de grandes vagas espraiadas,
Mar de ampla e convulsiva respiração,
Mar do sal da vida e dos túmulos por cavar mas sempre abertos,
Mar que bramas e esculpes as tempestades, mar caprichoso e sublime
Fundo-me contigo, também sou de uma e de todas as fases.
Participante do fluxo e do refluxo sou, exalto o ódio e a reconciliação,
Glorifico os amantes e os que abraçados dormem.

Sou quem testemunha o amor ao próximo,
(Posso enumerar os objetos da casa e omitir a casa que os contém?)

Não sou apenas o poeta da bondade, reconheço que também sou
o poeta da maldade.

Que arrebatamento é este sobre a virtude e o vício?
O mal impele-me e impele-me o resgate do mal, permaneço indiferente,
O meu caminho não é o caminho de quem descobre nem de quem o recusa.
Rego as raízes de tudo o que cresce.



(Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

BORGES: Pampa e a Vida Inteira




AO HORIZONTE DE UM SUBÚRBIO
_____________________________


Pampa:
Avisto tua amplidão que afunda os subúrbios,
estou me dessangrando em teus poentes.

Pampa:
Posso ouvir-te nas tenazes violas sentenciosas,
e nos altos bem-te-vis e no ruído cansado
dos carros de bois que vêm do verão.

Pampa:
O espaço de um pátio colorado me basta
para te sentir meu.

Pampa:
Eu sei que te cortam
trilha e atalhos e o vento que te muda.
Pampa sofrido e macho que estás nos céus,
não sei se és a morte. Sei que estás em meu peito.





MINHA VIDA INTEIRA
___________________



Aqui outra vez, os lábios memoráveis, único e semelhante
a vós.
Persisti outra vez na aproximação da ventura e na intimidade
do sofrimento.
Cruzei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca, de uma hispânica quietude.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada
imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Acredito profundamente que isso é tudo e que não verei nem
farei coisas novas.
Acredito que minhas jornadas e minhas noites se igualam em
pobreza e riqueza aos de Deus e aos de todos os
homens.




(Jorge Luis Borges, Lua Defronte, 1925)

sábado, 4 de julho de 2009

CARLOS NEJAR: Ensaios de Fogo


Revelações
_______________


1.

Os animais, como as palavras, não mentem. Os homens, sim.
Mas nalgum recanto, suas palavras os desvelam. Não calam.
Querem a revelação.
O animal possui o mesmo instinto nostálgico dos vocábulos.
Se os símbolos ocultam coisas, só as palavras as dizem.
E sem dizer, são cintos postos na gaveta das rochas.
Tendem a apodrecer. Por inanição, inércia.
Sob a fluvial ferrugem.


2.

A memória é um animal solto sobre o coração.
Que também conhece inércia, apodrecimento.
Sem palavras.



Alegoria
_______________



2.

O relógio é a medida do homem. Mas também objeto concreto da morte.
Como não entrelaçar esse silêncio cósmico de tempo a tempo, que as
palavras pendulam?
Não conhecemos ainda sequer a orla da casa bordada por esta agulha
de magnéticos naufrágios.




(Carlos Nejar, Editora Escrituras)

terça-feira, 21 de abril de 2009

TU, tão negra



TU, tão negra
_______________

À Giovana


Tu, tão negra
que te moves
como o tigre na colina
que serpeias o corpo
num bailado nu
vestal andrajoso da carne.

tu, parreiral roxo
negras frutas uvas dos seios
entre um baixio
de pássaros e o mistério das furnas

entre cordames de fogo
e a forja redentora das águas

Tu, tão negra
entre teu samba & teu jazz
canta o alvoroço dos vagalhões
e freme no silêncio de uma concha.

redemoinho e espelho
afogada em espumas de vento
e a violência plural das dores jorrantes

tardes que o outono vem trazendo
e marcando com pegadas
nas areias onde os peixes fisgam luares

Tu, tão negra
que te moves
para dentro do meu sonho

ardor andarilho, busca marinha
mádidas frescuras
princípio de precipício

criança, bailarina e pujante mulher


EU, tão negro dentro do meu sono.


(Anderson Dantas, 18/04/2009, Ilha de SC)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Vícios Sentidos



Vícios Sentidos
_______________


1.
na primeira noite,
nenhum cheiro.
nenhum pó.
e quatrocentas celas
abriram-se no núcleo.


2.
Hércules e Onfale
vencida carícia,
nadam entre fogos
e depois sumiram


3.
minha visão
é o martelar
de cem
cavalos cegos.


4.
quer dizer
que nem sempre
passos vão a caminho de.
grácil cruel inútil


5.
Tato.
um bailado mímico
entre o esqueleto
e o girar
que tomba ao fundo.


6.
ver os dedos
como lentos e espessos
cardumes
nem molhados
nem algas.


7.
sétimo sentido
areia e asa
aço vidro e vigias
entrelaçados nós
todos patéticos.




(Anderson Dantas, Ilha de SC)

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