sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Aleksandr Púchkin (Caderno Russo II)



INVOCAÇÃO



Ah! se é que, quando a repousar
À noite se acham os viventes.
E escorrem raios de luar
Nos túmulos dos mortos entes,
Ah! se é que, então, de fato, ali
Se esgota cada sepultura,
Minha voz Leila ora conjura:
A mim, amada, estou aqui!

Surge, visão do meu amor,
Como eras antes da partida:
Dia hibernal, frio e palor,
Mudada pela última lida.
Vem como estrela, imploro a ti,
Ou sopro, ou som mal perceptível,
Ou como aparição terrível,
Tanto me faz: estou aqui!

Invoco-te, mas não por ver
Vituperar quem, desumano,
Causou a amada me morrer,
Ou por alçar da morte o arcano,
Ou por que, alguma vez, senti
Dúvida ... mas, saudoso estando,
Digo que estou te amando,
Que sou teu todo: estou aqui!


1830

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Marina Tsvetáieva (Caderno Russo I)



Negra como pupila, como pupila sugando


Negra como pupila, como pupila sugando
Luz – amo-te, noite aguçada.

Dá-me voz para cantar-te, ó promadre
Das canções, em cuja palma há a brida dos quatro ventos.

Clamando-te, glorificando-te, sou apenas
A concha, onde ainda não calou o oceano.

Noite! Já gastei meus olhos nas pupilas do homem!
Encinera-me, negro sol – noite!



9 de agosto de 1916

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Do Ciclo Versos a Blok


Na mão, um pássaro que cala


Na mão, um pássaro que cala,
Teu nome – pedra de gelo na fala.
Um movimento de lábios, só.
Teu nome – quatro sons.
Uma bola em vôo apanhada,
Um guizo na boca, de prata.

Um seixo, atirado num lago calmo,
soluça assim, como te aclamo.
Ao leve tropel de casco noturno
Alto teu nome responde.
E o gatilho a estalar soturno
Lembra-o, em nossa fonte.

Teu nome – ah, não consigo! –
Teu nome – um beijo no ouvido.
No gelo terno de pálpebras rígidas,
Da neve é o beijo no mundo.
É um gole de fonte, azul e frígido.
Em teu nome – o sono é profundo.



15 de abril de 1916

(traduções de Aurora Bernardini)

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Encontro


Vou chegar tarde ao encontro marcado,
cabelos já grisalhos. Sim, suponho
ter-me agarrado à primavera, enquanto
via você subir de sonho em sonho.

Vou carregar esse amargo – por largo
tempo e muitos lugares, de penedos
a praças (como Ofélia – sem lámurias)
por corpos e almas – e sem medos!

A mim, digo que viva; à terra, gire
com sangue no bosque e sangue corrente,
mesmo que o rosto de Ofélia me espie
por entre as relvas de cada corrente,

e, amorosa sedenta, encha a boca
de lodo – oh, haste de luz no metal!
Não chega este amor à altura do seu
amor ... Então, enterre-me no céu!

(tradução de Décio Pignatari)

domingo, 26 de novembro de 2006

Ambiente Poético VI



a vantagem
dos homens ocos

é que não são ruidosos

aquilo que rói
é a verborragia

encerrada na poeira

guardar o silêncio
para o
futuro

geração destruída

sem sol.

vomitar estrelas
ruminando

os tempos.


(Anderson Dantas, inédito, 26 Novembro 2006)

terça-feira, 14 de novembro de 2006

Ambiente Poético V

(FÉTICHE)

Vestiu apenas os pés

com uma fina pele negra

e embrenhou-se no bosque noctívago

entrecortada por nus impulsos

e flamando suas mazelas & vergastas

malsãs voragens de SANGUE

(Anderson Dantas, do livro Cavalos do Inferno)

domingo, 12 de novembro de 2006

Ambiente Poético IV



BARCOS ANCORADOS

(no momento da visão de um quadro)

Ó flecha marinha que no murmúrio se assenta!
É qual um arco distendido, adormecido sobre uma voz
onírica, clamante, embebida de sutil lume se ornamenta!...
É como um festejo de cores que o esgrimista pule
com um marejo nos olhos, faróis intensos e silentes
que vem despejar espelhos calmos e límpidos
em nossas dores, adeja à sala estreita em brancor
de nossa fronte, esta sabedoria inflamada, contente,
este fluxo latejante purpúreo e soberano e ah!
Gloriosas e voluptuosas crinas ondeantes!...


(Anderson Dantas, do livro O Amor Duplo e o Desespero das Águas)

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

Ambiente Poético III



ANJO

(extrato)


Sem seu corpo ou maciez
Fui lançado às escarpas, sem mudez
Sem música, no vermelho das lágrimas

Foi quando o atirador de facas
me convidou para no circo
rolar sobre as feridas

E eu não pus nenhuma máscara
eu ria sobre meu túmulo
que apodrecia dentro de mim

E quando Satã soprou
seu vômito negro, eu estava
de saída para encontrar Pandora

E ela me puxou pra si
e me beijou as axilas
e cheirou minha alma de sete facas

Cravado de espinhos eu subi -
Ao monte. e morri. e nunca acordado
despi a bainha de meu jorro

Lá de cima eu fui.
Lá embaixo no inferno que suporto
Lá discípulo de sempre. ANJO.


Anderson Dantas, escritos esparsos, 2006.
Location:Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

sábado, 4 de novembro de 2006

Ambiente Poético II




deita água na minha fronte.
e bebe.
desta fonte aqui onde
a carne molhada são papoulas.
isso.
papoulas mergulhadas.

veja isto. um poema.
se parece conosco minha criança querida
THE SLEEPERS ELM

AH, NÃO. NÃO.
parece assim que a vida é uma porcaria.
Sylvia Plath então, que horror. que horror.
deita água em minha fronte.
e deita.
isso.

não entendes? LAUTRÉAMONT-LOHENGRIN-LAFORGUE?
lábio língua labor.
que abismo de lábios que alar de línguas?
não entendes? escute

esquece isto.
vem. matar a sede das madrugadas.
passar o toque da seda
nas reentrâncias insabidas
olhos transidos êxtases coloridos
trator das unhas viajadas de carne

acompanha meus passos, não os do homem.
os do menino. do caprídeo. do longe.
que ao final deste percorrido, mundéu.
vasta sentinela de cabeleiras douradas
que poço eu sou que fundura tanta
que fundo eu sou poçura quanta
meu amor, diga-me sopre-me uns versos ...

eu não sei. não sei.
destas tuas cousas assim de poço.
água imunda eu acho.
cacho de frutas podres. às vezes doce?
doçura triste posso cantar?
miar? acho que minhas dores a Ti
parecem miados?
oh, como me deixas? traste, arraste
que vida! que vida!

(aperta as mãozinhas delicadas
de encontro ao rosto e chora
demoradamente)

devia ser uma blasfêmia MESMO
o pranto da mulher
que altura que baixeza
estas lágrimas de lodo & ouro
estas pupilas de rubi & vidro

estás zangado comigo não estás?
juro, te farei o melhor,
o que quiseres, me arrastarei
serei o mosaico e a cor buscada
a rajadas de vento furioso & grito
juro, te darei o meu pior,
os meus negrumes pintalgados
de açoite e lama-monstra
mas não te afastas e não te alastras
como o mar poesiatua NUNCAMAIS
POESIATUA assim é que me MATAS
ficaremos os dois em silêncio, que tal?
cataremos conchinhas arrancaremos
asinhas e anteninhas de rouxinol e besouro
mas, não mais cousas de dentro, te peço
deita água em minha fronte.
me come.
Te deleita.
amanhã carne molhada.
isso. bebe.
papoulas de sangue.
menino ...
mundéu. olhos de seda. poço.


Anderson Dantas, escritos esparsos, 2006.
Location:Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.


quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Ambiente Poético I


tantas jóias tontas tonturas tonterias
já rubi sangue vivo vermelhidão sim, jaspe e olhar
negro e escuridão tundras travas trevas troando
e olhar-réptil-esverdeado esmeralda até na garganta
girafas de ouro peixes de prata barcos de bronze
uns lábios de cobre acobreadas visões de deus doido
e abaixo umas pétalas de turmalina e vidro encerado
todas elas já falei muito que lumes pérfidos que.
e muito. cheio do saco. dos minerais. das gentes.

mas topázio?
topázio não.
vês?!
que jóia de palavra
topázio.

e agora que alegria em minhas
vísceras
topázio.
e agora
topázio isto topázio aquilo
topázio
que sonoridade! que som libera
que tigre libertário!

com as garras arranhando
as orquídeas e a oquidão

topázio tigre tantálico titã touro torneado que altura teu nome teu som vejam ouçam T-O-P-Á-Z-I-O separem seus quartos suas coalhadas leitosas-amarelentas nada NADA MAIS será como antes umas feridentas pintinhas nos olhos oleosos NADA como TOPÁZIO e topázio para salvar o mundo sem chances sem rumos sem beiras sem estradas e a cegueira do verme por baixo beijando beijando nada nada no esgoto sem riqueza somente a santidade topázio topázio negro topázio branco topázio de janelas feridas de dentes circunvoantes nas orelhas do lince lince (outra grande santidade!) vem vai voa cai quebra topázio terrume torrada carne e pesado afã vai vem para os tentáculos de titânio tensão brutal carne de pedra e raridade. bela palavra.

Anderson Dantas, escritos esparsos, 2006.
Location:Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

CORTÁZAR, O esmagamento das gotas



O esmagamento das gotas

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore. Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada do cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.

domingo, 22 de outubro de 2006

ARTAUD, Carta ao Papa



Carta ao Papa

O confessionário não é você, oh Papa, somos nós; entenda-nos e que os católicos nos entendam.
Em nome da Pátria, em nome da Família, você promove a venda das almas, a livre trituração dos corpos.
Temos, entre nós e nossas almas, suficientes caminhos para percorrer, suficientes distâncias para que neles se interponham os teus sacerdotes vacilantes e esse amontoado de doutrinas afoitas das quais se nutrem todos os castrados do liberalismo mundial.
Teu Deus católico e cristão que, como todos os demais deuses, concebeu todo o mal:
1º. Você o enfiou no bolso.
2º. Nada temos a fazer com teus cânones, índex, pecado, confessionário, padralhada, nós pensamos em outra guerra, guerra contra você, Papa, cachorro.
Aqui o espírito se confessa para o espírito.
De ponta a ponta do teu carnaval romano, o que triunfa é o ódio sobre as verdades imediatas da alma, sobre estas chamas que chegam a consumir o espírito. Não existem Deus, Bíblia. Evangelho; não existem palavras que possam deter o espírito.
Nós não estamos no mundo, oh Papa confinado no mundo; nem a terra nem Deus falam de você.
O mundo é o abismo da alma. Papa caquético. Papa alheio à alma, deixe-nos nadar em nossos corpos, deixe nossas almas em nossas almas, não precisamos do teu facão de claridades.


(Antonin Artaud, tradução de Cláudio Willer)

Mais dos BEATS (uivos, de repente)



ESTOU FAZENDO MINETE NUMA BELEZA de mulher; é verão, estamos num quarto de sobrado que-não-sei-onde-fica, mas é perto da rua de Bunker Hill do Corcel Branco Indo para o Leste, onde, na noite anterior, andamos procurando um lugar escondido e escuro para trepar, na sombra enluarada de uma casa que puxava a nossa cama aberta, ou veículo; mas, depois de começar, percebendo que não era tão escuro assim e lá dentro da casa das tristes e quase imperceptíveis janelas vermelhas talvez nos estivessem vendo (alusões a Pauline Cole e eu, rindo na macia escuridão oral) – não sou rico, nem pobre ou feliz em matéria de amores. Agora estamos num quarto, de dia, e ela está sentada num banquinho que lembra o de ferro vermelho de Irene; e eu, de joelhos, gemendo diante dela, que retesa o corpo para trás, em êxtase, enquanto chupo e fodo – de repente me dou conta que um grupo de homens aglomerados no telhado da casa vizinha pode enxergar tudo, mas eles fingem que nem estão olhando no momento (passada a paixão, terminada a cegueira) em que levanto os olhos: no quarto há grandes janelas duplas que dão para todo o telhado – além disso, do outro lado do beco, uma mulher ficou dando risadas toda a manhã – vagamente, durante o ato, cheguei a pensar que fosse porque tinha nos visto, mas não me importei – No entanto, agora, ela ri enquanto me viro com malícia para todos os lados, em busca de possíveis observadores suspeitos, ali no quarto da eternidade com minha beldade nua –

(Book of dreams, Jack Kerouac)

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PARA JACK KEROUAC

Há alguns anos atrás, eu sonhava com panquecas em um lugar onde não havia nem papel higiênico.
Eu me queixei disso a Jack Kerouac por escrito.
Em resposta recebi uma carta falando de uma nova receita para panquecas conhecida, por coincidência, como HUNGRY JACK.
Ele não estava zombando de mim porque acabo de ver na TV um comercial que anuncia justamente esta marca, HUNGRY JACK.
Gostaria de aproveitar a ocasião para louvar este homem por sua honestidade e grande capacidade de observação.

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VIDE


O buraco negro vazio
Onde mamãe fala do frio
E eu não rio

Meu corpo vibrava
Um elefante dormia
Levaram minha mala e disseram que eu não girava

O que é que há com o meu rabo
Em Paris, eu tinha um rabo sem igual
Quando judeu me achava um intelectual


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TEORIAS NOTURNAS


Teorias noturnas desaparecem em atos de adultério.
A luz do dia se infiltra e os malabaristas filipinos
[somem.
O amigo do dia substitui o bandido da noite.
Nenhum papel a desempenhar. Aqui atos de
[de bravura valem pouco.
Vendo o obelisco em plena luz do dia.
Nenhum punho pela janela.


(Carl Solomon, em De repente, acidentes)


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Estão sentados numa cama baixa, coberta de seda branca. A garota abre as calças dele com dedos delicados e puxa fora seu peru, que é pequeno e duro. Como uma pérola, uma gota de lubrificante brilha em sua ponta. Ela acaricia a cabeça gentilmente: - Tire as roupas, Johnny! – Ele se despe com movimentos rápidos e seguros e fica nu de frente para ela, com o pau pulsando. Ela faz um gesto para que ele se vire, e ele pirueta pelo quarto, parodiando uma modelo, com a mão na cintura. Ela tira a blusa. Os seios são altos e pequenos, com bicos eretos. Tira suas calcinhas. Os pêlos púbicos são negros e brilhantes. Ele se senta a seu lado e estende a mão em direção ao seio. Ela detém as mãos dele.
- Querido, eu quero rodear você – sussurra ela.
- Não. Agora não.
- Por favor, eu quero.
- Está bem. Vou lavar a bunda!
- Não, deixe que eu lavo!
- Oh, esqueça, não está suja.
- Está, sim. Vamos, Johnny, venha!
Ela o leva até o banheiro. – Tudo bem, abaixe-se. – Ele cai de joelhos e se inclina para a frente, com o queixo no tapete do banheiro. – Por Alá – diz ele. Olha para trás e sorri para ela. Ela lava o cu dele com sabonete e água quente, enfiando o dedo bem dentro.
- Dói?
- Nãããããããão.
- Vamos, meu bem. – Ela o guia até o quarto de dormir. Ele se deita na cama de costas e joga as pernas por cima da cabeça, apertando os cotovelos por trás dos joelhos. Ela se ajoelha e acaricia a base de suas coxas, as bolas, correndo o dedo pela fenda eterna. Afasta as nádegas, inclina-se e começa a lamber o ânus, movendo a cabeça em círculos lentos. Pressiona as bordas do cu, lambendo mais fundo e mais fundo. Ele fecha os olhos e grunhe. Ela lambe a fenda eterna. As bolas pequenas e tesas... uma grande pérola aparece na ponta de seu pau circuncidado. Sua boca se fecha sobre a cabeça. Ela chupa ritmadamente para cima e para baixo, parando na subida e movendo a cabeça em volta num círculo. A garota brinca gentilmente com as bolas dele e desliza o dedo médio dentro do seu cu. Quando desce chupando até a raiz do membro, ela belisca sua próstata zombeteiramente. E o jovem sorri e peida. Ela está chupando o pau dele freneticamente. O corpo do garoto começa a se contrair, dobra-se em direção ao queixo. E cada vez a contração é mais prolongada. – Uiiiiii! grita ele, com todos os músculos tensos e o corpo inteiro, se esforçando para descarregar-se através do pau. Ela engole o esperma, que lhe enche a boca em jatos grandes e quentes. Ele deixa os pés caírem sobre a cama. Arqueia as costas e boceja.


(William Burroughs, in The naked lunch, trecho do texto A festa anual de A. J.)

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

BAUDELAIRE: O Patrono do Mal



A DESTRUIÇÃO

Sem cessar ao meu lado o Demônio se agita,
E nada ao meu redor como um ar impalpável;
Eu o levo aos meus pulmões, onde ele arde e crepita,
Inflando-os de um desejo eterno e condenável.

Às vezes, ao saber do amor que a Arte me inspira,
Assume a forma da mulher que eu vejo em sonhos,
E, qual Tartufo afeito às tramas da mentira,
Acostuma-me a boca aos seus filtros medonhos.

Ele assim me conduz, alquebrado e ofegante,
Já dos olhos de Deus afinal tão distante,
Às planícies do Tédio, infindas e desertas,

E lança-me ao olhar imerso em confusão
Trajes imundos e feridas entreabertas
- O aparato sangrento e atroz da Destruição!

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PROJÉTEIS E MEU CORAÇÃO A NU

O que é criado pelo espírito é mais vivo que a matéria.

O amor é o gosto de prostituir-se. Mesmo o prazer mais puro pode sempre conduzir a isso.

Que é a arte? Prostituição.

O amor pode provir de um sentimento generoso - o gosto de prostituir-se - mas logo é corrompido pelo gosto de propriedade.

O caráter profundo de algumas expressões vulgares: buracos que gerações sucessivas de formigas escavaram.

PROJÉTEIS, SUGESTÕES

O homem de letras também movimenta capitais e faz-nos desfrutar de uma certa ginástica do intelecto.

Amamos tanto mais as mulheres quanto mais estranhas elas nos parecem. Gostar de mulheres inteligentes e um prazer de pederasta. Por isso que a bestialidade exclui a pederastia.

O sentido do ridículo pode não excluir a caridade, mas isso é raro.

Da mulher. Ares.

Ares encantadores, que são fonte de beleza:

o ar saturado, o ar dominador

0 ar aborrecido, o ar voluntarioso,

o ar esgazeado, o ar perverso,

o ar indecente, o ar doentio,

o ar frio, o ar felino, misto de infantilidade,

o ar introvertido, de langor e de malícia.

MEU CORAÇÃO A NU

A mulher e o oposto do Dândi.

Deve pois nos causar repulsa.

A mulher tem fome e quer comer - sede, e quer beber.

No cio, quer ser comida.

Que glória!

A mulher é natural, isto é abominável.

Por isso mesmo ela é sempre vulgar, ou seja o contrário do Dândi.

Tornar-se um homem útil sempre me pareceu algo de muito detestável.

POLÍTICA

É por não ser ambicioso que não tenho convicções, como as entendem as pessoas do meu século.

Não há em mim qualquer base para uma convicção.

Há sempre uma certa covardia ou moleza nas pessoas de bem.

Só os aventureiros em convicções. De quê - De que têm de vencer. Por isso, vencem.

Por que eu venceria, se não tenho vontade de tentar?

Impérios esplendorosos podem assentar no crime, e nobres religiões em imposturas.

É preciso trabalhar, e se não for por gosto pelo menos por desespero; até porque, bem vistas as coisas, trabalhar é menos tedioso do que se divertir.

Imenso nojo dos cartazes.

O poeta, o padre e o soldado são a única coisa que ainda há de grandioso entre os homens: O homem que entoa o seu canto, o que abençoa, o que sacrifica e se sacrifica. O resto é feito para o chicote.

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Orides Fontela: A Teia do Silêncio



PEDRA

A pedra é transparente:
o silêncio se vê
em sua densidade.

(Clara textura e verbo
definitivo e íntegro
a pedra silencia).

O verbo é transparente:
o silêncio o contém
em pura eternidade.

(Transposição, 1966-1967)

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O GATO

Na casa
inefavelmente
circulam olhos
de ouro

vibre ( em ouro) a
volúpia
o escuro tenso
vulto do deus sutil
indecifrado

na casa
o imperecível mito
se aconchega

quente (macio) ei-lo
em nossos braços:
visitante de um tempo sacro (ou de um não tempo).


(Helianto, 1973)

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NUDEZ


Ainda há maior nudez: barreira
ininterrupta do silêncio
guardando em si a evidência das formas.

Ainda há maior nudez: evidência
sem mais sinais
exata em sua luz interna.

Ainda há maior nudez: a luz
infinda simplicidade
sem apoio além de si mesma.


(Alba, 1983)

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ÁGUAS


amargas
cobrem o
barco

as águas
salobras
trazem
o dilúvio, o naufrágio, o necessário
batismo.


Através do
silêncio
cai a
água

filtra-se
através do ser
a inextinguível
água
do silêncio.


(Rosácea, 1986)

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Ezra Pound: scabrous arse-hole



(fragmentos do Canto XV)

O melífluo, deitado em glucose,
o pomposo em rama de algodão
com um pivete como as gorduras em Grasse,
o eminente escabroso olho do cu, cagando moscas,
retumbando com imperialismo,
urinol último, estrumeira, charco de mijo sem cloaca,
...... r menos tumultuoso, ....... Episcopus
...... sis,
de cabeça para baixo, atarraxada na lavadura,
as pernas oscilando e postulentas,
um protector de partes clerical suspenso para trás sobre
[o umbigo

o preservativo cheio de baratas,
tatuagens em volta do ânus,
e um círculo de damas jogadoras de golfe em roda dele.
os violentos corajosos
cortando-se com facas,
os covardes incitadores à violência
..... n e ....... h comidos por gorgulhos,
........ ll como um aborto inchado,
a besta das cem patas, USURA
e a lavadura cheia de mesureiros,
fazendo vénias aos senhores do sítio,
explicando as vantagens dele,
e os laudatores temporis acti
raclamando que a me ... costumava ser mais preta e mais rica
e os fabianos exigindo a petrificação da putrefação,
por uma caca nova em losangos,
os conservadores cavaqueando,
distinguiam-se por polainas de carne humana de bairro de lata.
e os apadrinhados num grandioso círculo,
lamentando-se de insuficiente atenção,
a procura sem fim, contraprotesto pelo folar que não veio
o litigioso,
um suor verde de fel, os proprietários das notícias, ... s
o anónimo

(tradução de Luísa MLQ Campos e Daniel Pearlman)

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FIGURA DE DANÇA

- para as bodas em Cananéia -

De olhos escuros,
Ó mulher de meus sonhos,
De sândalo e marfim,
Não há nenhuma igual entre as dançarinas,
Nenhuma com pés rápidos.

Não te encontrarei nas tendas
Na escuridão amortecida.
Não te encontrarei junto à nascente
Entre as mulheres com seus cântaros.

Como um renovo sob a cortiça são teus braços;
Tua face é como um rio com luzes.

Alvas como a amêndoa são tuas espáduas;
Como amêndoas recentes desnudadas da casca.
Não te defendem com eunucos
Nem com barras de cobre.

Ouro-turquesa e prata estão no lugar do teu repouso.
Uma escura veste, com fios de ouro em frisos
Colheste ao teu redor,
Ó Nathat-Ikanaie, "Árvore-ao-pé-do-rio."

Como um regato entre o junco são tuas mãos sobre mim;
Teus dedos ma gélida corrente.

Tuas servas são tão alvas como seixos.
Ah! sua música ao teu redor.

Não há nenhuma igual entre as dançarinas,
Nenhuma com pés rápidos.

(tradução de Augusto de Campos)



segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Haroldo de Campos: entre Vênus e Minerva



poema qohelético 2: elogio da térmita

os cupins se apoderaram da biblioteca
ouço o seu áfono rumor
o canto zero das térmitas
os homens desertaram a biblioteca
palavras transformadas em papel
os cupins ocupam o lugar dos homens
gulosos de papel peritos em celulose
o orgulho dos homens se abate madeira roída

tudo é vão

a lepra dos cupins corrói o papel os livros
o gorgulho mina o orgulho
assim ficaremos cadáveres verminosos

escrevo este elogio da térmita

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o poeta ezra pound desce aos infernos


não para o limbo
dos que jamais foram vivos
nem mesmo
para o purgatório dos que esperam
mas para o inferno
dos que perseveram no erro
apesar de alguma contrição
tardia e da silente senectude
- diretamente com retitude -
o velho ez
já fantasma de si mesmo

e em tanta danação
quanto fulgor de paraíso

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mimnermo
tís dè bíos ...


que vida sem o consolo
de afrodite - ouro e crisólitos!
melhor morrer quando não mais
o mel do prazer a cripta
do amor furtivo a cama
me disserem: ama!

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a verdade


a verdade é o
delírio báquico:
nela nenhum elo
escapa à embriaguez
e como cada
um deles
ao se-
parar-se i-
mediatamente já se dis-
solve
ela é
igualmente a
paz
translúcida e
singela

sábado, 16 de setembro de 2006

SAMUEL BECKETT, A Companhia do Vazio


Quando estás perturbado, as contas simples são um conforto para ti. Um refúgio. No fim, chegas a sete metros cúbicos, aproximadamente. Mesmo imobilizado na escuridão intemporal, achas consolo nos números. Partes de um certo ritmo cardíaco e calculas quantas batidas por dia. Por semana. Por mês. Por ano. E calculando um certo tempo de vida, por toda a vida. Até a última batida. Mas, naquele momento, com pouco mais de setenta bilhões de batidas para trás, sentas-te na pequena cabana de verão, avaliando a cubagem. Sete metros cúbicos, aproximadamente. Por qualquer razão, isso te parece improvável e refazes as contas. Mas não tinhas ido muito longe, quando ouves seus passos leves. Leves para uma mulher daquela altura. Com o pulso acelerado abres os olhos e após um momento que parece uma eternidade, seu rosto surge à janela. Nessa posição, a palidez natural que tanto admiras quase toda azul, como, sem dúvida, tua palidez deve parecer-lhe completamente azul. Pois a palidez natural é uma característica que ambos têm em comum. Os lábios violeta não retribuem teu sorriso. Como essa janela está à altura de teus olhos, do lugar onde te sentas, e o chão, de qualquer forma, quase no mesmo nível do terreno do lado de fora, não podes deixar de imaginar se ela terá caído de joelhos. Sabendo, por experiência, que a altura e comprimento que têm em comum é a soma de segmentos iguais. Pois, quando de pé ou deitados, colam rosto com rosto, depois os joelhos se encontram, os púbis, e os cabelos das duas cabeças se misturam. Pode-se deduzir daí que a perda de altura do corpo sentado é a mesma que a daquele que se ajoelha? Nesse ponto, partindo do princípio de que a altura do assento é regulável, como no caso de certos tamboretes de piano, fechas os olhos para medir com uma medida mental e comparar o primeiro e segundo segmentos, isto é, da sola dos pés à rótula e dali à bacia. Como te entregavas, em movimento ou repouso, com os olhos cerrados em tuas horas de vigília! De dia e de noite. Àquela escuridão perfeita. Àquela luz sem sombras. Simplesmente partir. Ou ficar como agora. Surge uma única perna. Vista de cima. Separas os segmentos e os colocas lado a lado. É como quase presumiste. A parte superior é mais longa e a perda de altura de uma pessoa sentada é maior quando o assento está ao nível dos joelhos. Deixas os pedaços jogados por ali e abres os olhos, para encontrá-la sentada diante de ti. Tudo absolutamente imóvel. Os lábios rubros não retribuem teu sorriso. Teu olhar desce a seus seios. Não os recordavas tão grandes. Ao ventre. A mesma impressão. Que se mistura com a do ventre de teu pai forçando o cós desabotoado. Será possível que esteja grávida sem que tenhas, ao menos, pedido sua mão? Voltas-te para ti mesmo. Ela também fechou os olhos, advinhas. Assim ficam, sentados face a face, na pequena casa de verão. Com os olhos fechados e as mãos tocando o púbis um do outro. Naquela luz irisada. Naquele silêncio total


(Samuel Beckett, in The Company)

Állex Leila, a Herdeira


















Baile
por Állex Leilla

As coisas brincavam na sala
e eu não sabia o que eram;
dançavam na copa,
também na varanda,
no telhado também.
Uma coisa eu podia: ver.
E não havia outras dimensões.
Eram formas e movimentos,
sons, circunferências.
Só não tinha ali uma coisa: o saber.

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Vísceras [1]


Do pouco que me lembro da vida, não há muito o que destacar.
De madrugada a cidade ficava mais estranha ainda e da janela do meu quarto, na mais absurda solidão, eu podia ver uma claridade piscando atrás dos prédios e mesmo sabendo se tratar de uma antena de rádio ou de estação de TV, pensava desconexo: uma nave espacial por certo quer descer.
Porque talvez me fizesse bem pensar assim , não sei. Que mais poderia ser?
A dor incontrolável da perda de dentes. Os meus dentes cediam à uma força desconhecida e caíam ou inchavam sem piedade. O nariz sangrava, catarro grosso e complicado me saía pela boca, havia não sei quantos vírus nos pulmões.
Os lençóis imundos e suados, ocultando pra sempre os doces cheiros do tempo em que eram lavados: de lavanda e sabão em pó.
Meu movimento da cama pro banheiro, do banheiro pra cama, arrastando dores que eu não poderia realmente descrever.
A necessidade terrível de um copo de chocolate quente, fumegante, pra escaldar a língua e expulsar o podre dos dentes, das gengivas, do estômago. E cravo, cravos pra mastigar e desafogar a garganta, recuperar minha voz desaparecida, minha voz morta, enterrada dentro de mim.
Às vezes, havia estrelas no céu que me assustavam. Eu as encarava e com o passar dos segundos ia vendo-as se perderem sem explicação. Não caíam nem sumiam atrás de nuvens, simplesmente iam diminuindo até fugirem de vez e, nem mesmo com os óculos, eu as conseguia ver.
A janela ficava sempre aberta. E mesmo quando tinha chuva brava, não fechava nem me afastava, tomava-a inteirinha, os pingos entrando pelos poros da pele, piorando meu estado, mas me alegrando em parte.
Um olhar semimorto no espelho.
A pele manchada de marrom, pontinhos escuros que cresciam de um dia pro outro. Meu corpo descamando. Descarnando.
Ninguém. Ninguém. Ninguém.
A comida acabava aos poucos. Eu comia tão mínimo, umas migalhas de manhã, que duravam até o anoitecer. Mas mesmo assim acabava, ainda que todo o meu dinheiro, o último que pude ajuntar no tempo em que trabalhava, estivesse todinho lá, empregado nela, na maldita comida que minava.
Acabava e restava somente água na torneira.
Ninguém cortou a água nem me despejou, mas cortaram a luz e o telefone.
Num dia muito difícil, até quis pedir ajuda. Mas não podia mais andar e gritando não adiantava, a voz se tornara tão mínima que sumia logo debaixo do barulho lá de fora. E era, inclusive, tempo de sons pesados: caminhões, buzinas, gritos, falares ríspidos, carnaval, heavy, grunge, mangue-beat, apitos, ônibus, aparelhos comuns à construção civil, rádios AM/FM o dia inteiro, televisores na Globo, no SBT, na MTV, a cidade, enfim, toda ela, lá fora, bem longe do meu alcance.
No último momento de lucidez – uma lucidez embaçada, é verdade, mas a última –, me lembrei de uns versos de uma canção de infância:

Havia um patinho que vivia a nadar
saiu de dentro d’água e se pôs a cantar:
quá quá quá quá quá quá quá quá quá...
lá vem a cozinheira com o seu facão na mão
o pobre do patinho foi parar lá no fogão:
tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu tchu...

Não sei se era da minha infância, não sei se era coisa vista ou ouvida de outrem e guardada dentro de mim. Mas tentei, com tanta força, tão irresponsável violência, me lembrar dos últimos versos que completavam a canção, que, sem querer, ou querendo demais lá no pântano desconhecido de mim, BUM!, tudo se arrebentou nas têmporas, e eu fui, num segundo e de uma só vez, todo todo pelos ares.


Állex Leilla

[1] Publicado na Revista Iararana (Salvador/BA) em 1998.

terça-feira, 12 de setembro de 2006

NAURO MACHADO, O Netuno do Maranhão


(foto da Chapada das Mesas, MA)

AMPULHETA

Eis que já te acossa
o despojo de tudo.
Teu tempo é por demais
saciedade.

(Gasta, podre maçã,
desfaz-se no chão idêntico.)

Eternidade,
usufruto do tempo:
eis que te devora
o ludíbrio de vida.

(Do Frustrado Órfico, 1963)


O PÃO DOS MORTOS

(Deixai que os mortos
enterrem seus mortos.)

Eu, por mais que faça,
desenterro a graça
dos que pedem paz.
Eu, que lhes nego - e ao osso,
o eterno repouso

(a eles, sombra da água
que em nada deságua
e só pedem que
lhes deixemos ser
branco esquecimento);

eu, que lhes sepulto
- duas vezes - o vulto,
dando-os a mim
e dando-lhes fim,
eu, por mais que faça:

dou-lhes pão e desgraça.

(Ouro Noturno, 1965)


MATILHA

Vocábulo onde me faço
ladrão de uma ladra loba:
pudesse ser eu o regaço
que se nutre da tua boca
crepuscular, ladra e loba,
loba faminta que ladra
por sobre a orgânica estopa
que me cobre, enterra e tapa!

(A Vigésima Jaula, 1974)


MASMORRA DIDÁTICA

Poesia: idade-média
descacando a pele
da criatura humana,
para deixá-lo em osso
até o final dos tempos.

Invenção de verbo,
a poesia fede
a solidão humana
escovando o hálito
todas as manhãs.

(Por não ter um dente
ou residir em boca,
o dia se eterniza
sem as nossas fezes
e a nossa saliva.)

Poesia: idade-média,
idade da pedra,
idade de Adão.
Teu mundo amanhece
diariamente.

(Masmorra Didática, 1979)

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

HILDA HILST, A Dama Rara do Profundo



ODE FRAGMENTÁRIA (1961)

(Heróicas)


Morremos sempre.
O que nos mata
São as coisas nascendo:
Hastes e raízes inventadas
E sem querer e por tudo se estendendo
Rondando a minha
Subindo vossa escada.
Presenças penetrando
Na sacada.

Invasões urdindo
Tramas lentas.

Insetos invisíveis
Nas muradas.

Eis o meu quarto agora:
Cinza e lava.
Eis-me nos quatro cantos
(Morte inglória)
Morrendo pelos olhos da memória.
Aproximam-se.
E libertos de presença da carne
Se entreolham.

O teu nascer constante
Traz castigo.
Os teus ressuscitares
Serão prantos.

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TRAJETÓRIA POÉTICA DO SER (I)
(1963-1966)

11.

Cavalo, halo de memória, guardo-te no peito
Sobre esta grande artéria
Fonte de vida e alento que sustenta
Amor de madurez e adolescência.

Cantando-te sou teu corpo e tua nudez.
E ombro a ombro seguimos a alameda
Casco de dor num caminho de sol
E labareda, indivisível água
Obrigando-me a ver o que tu vês.

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ROTEIRO DO SILÊNCIO
(1959)


Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.

Os amantes no quarto
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido
Quero que saibam:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.

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SOBRE A TUA GRANDE FACE


Hoje te canto e depois no pó que hei de ser
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
Quantas me darás para o meu outra vez amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,
Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivo
Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem
Teus pasto que é o meu verso orvalhado de tintas
E de um verde negro teu casco e os areais
Onde me pisas fundo. Hoje te canto
E depois emudeço se te alcanço. E juntos
Vamos tingir o espaço. De luzes. De sangue.
De escarlate.

sábado, 2 de setembro de 2006

Jim Morrison, o Poeta-lagarto do Rock



Chacal, farejamos a caravana dos sobreviventes.
Ceifa sangrenta nos campos de batalha.
Nenhum cadáver sacia nosso magro estômago.
A fome põe-nos na pista do cheiro.
Estrangeiro, viajante,
olha-nos nos olhos e traduz
o horrível latido dos cães do passado.

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Ave marinha murmúrio marinho
Rumor de sismo
Incensório de fogos-fátuos
Clamor das vagas
Estrada em serpentina
Até aos subterrâneos chineses
Habitáculo do vento
Deus do luto

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Cure blindness with a whore´s spittle.

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(Jim Morrison, in The Lords in The News Creatures)

quinta-feira, 31 de agosto de 2006

RIMBAUD, L´angelot Maudit



O ANJINHO MALDITO


Portas brancas, tetos soturnos
Como nos domingos noturnos

No fim da vila, sem um ai,
A rua é branca, a noite cai.

Nas casas, estranhos arranjos:
Nas janelas, cortinas de anjos.

Mas, para um marco, nesse instante
Acorre mau, frio, hesitante

Anjinho negro que se incuba
Após comer demais jujuba.

Faz seu cocô: desaparece:
Mas esse vil cocô parece,

À santa lua que vagueia,
Uma cloaca de sangue cheia.

(Arthur Rimbaud, Album Zutique)


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CABEÇA DE FAUNO


Na ramagem, escrínio verde e informe,
Na ramagem, manchada de ouro e flores
Esplendorosas onde o beijo dorme,
Vivo e partindo insólitos lavores,

Um fauno aflora os olhos e o chavelho
E morde a rubra flor com dentes brancos.
Lisa e sangrante como um vinho velho
No bosque a boca explode em risos francos.

E quando então fugiu - como um esquilo -
Seu riso ainda em cada folha oscila;
Vê-se o pisco assustar o então tranqüilo
Beijo-de-ouro do Bosque, que se afila.

(Arthur Rimbaud, Poésies)

sábado, 26 de agosto de 2006

C. RONALD, Um Gigante entre nós



No final de Julho de 1993, C. Ronald por ocasião do lançamento de seu livro Cadeira de Édipo, tinha o comentário do escritor Péricles Prade: - É preciso termos reverência, estamos diante de uma Inteligência privilegiada, um Poeta como Carlos Ronald Schmidt, da estirpe de um Eliot, de um Cesar Vallejo, de um Pound ...

De lá para cá, C. Ronald continua sendo um Gigante entre a mediocridade poética que nos assombra muitas vezes. Pois em detrimento dos lucros fáceis os editores preferem publicar farsantes a publicar a verdadeira poesia.

Um Poeta tão fantástico como Ronald, mas afastado da grande mídia, parece ser absurdo, mas não é. A ele se junta, por exemplo, o maranhense Nauro Machado, que escreve há décadas e décadas, Poesia do mais puro malte.

Vilson Nascimento assim descreve C. Ronald em 1979 no Jornal de Santa Catarina:
(...) – Não há tema ou argumento em seus poemas. Tudo emerge de uma cósmica consciência. Se atentarmos, sem receio, sem censuras e preconceitos, veremos que através de seus poemas (colocados como verdadeiras sentenças ou aforismos poéticos), poderemos atingir toda a capacidade de vôo e alcance do espírito humano.
Sua maneira originalíssima de expressão, em estilo novo e penetrante, nos parece única em toda história de literatura. Igualmente único nos parece seu processo criativo, que presumimos desenvolvido com estranhos recursos intuitivos e/ou intelectivos. Ou até mesmo de um processo estranho a esses recursos. De um estágio mental ainda desconhecido e mais elevado.

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CANTO XIII


O que se prende no tempo
é do tempo a árvore crua um ídolo sem desejos
e os órfãos feitos de um osso apenas

Entre duas crianças amestradas entre duas
moléculas frondosas
de quem tirei os segredos


(do livro As origens, 1971)
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Onde estará aquele velho álbum? A cena
das fiandeiras sob as trombetas que o fechavam.
Os ancestrais esperam... Seria um mero encontro
não houvesse a consciências das coisas deixadas para trás.
Pompéia desenterrada. O valor menos notado
também assombra a idade. Afinal, para que encontrarmos
humanos petrificados embaixo de um tempo
que só poderia existir dentro daquilo mesmo?
O amor não foi maior ou menor para eles. Ontem
ninguém autorizou essa exibição nem a de uma família
embaixo da ponte. Mas essa parte de pedra
que nunca podemos entender e que teríamos
depois de séculos pode ainda enterrar
todos os nossos sonhos num instante.


(do livro A Cadeira de Édipo, 1993)

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51

o dote que se oferece no horror
dessa cidade é mais uma manobra difícil
das marés viradas em nossos pulsos
tal o esforço da visão da névoa

sonhos e vibrações técnicas estão aí
para tudo que seja atual
em frontes douradas pois ficou vazio
o que é pesado como o antigo absurdo

seu desejo excepcional ainda dentro
do medo com a mudança recente de vultos
interessados na superfície do arrependimento

mas chegou ao fim a fúria da indecência
e as unhas vistas entre os ossos podem matar
elas conhecem o que pode ser morto de novo


(do livro A Razão do Nada, 2001)

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98

há no pensador uma tragédia limitada
o diabo atira pelas frestas para acertar
na verdade na mãe opressora no pai incalculável
se alguma qualidade pode ser preferida
se os sentidos do filho excluírem a perda
na medida exata dos ancestrais
e reter a morte com outra igual haverá muita
precisão embora tal habilidade não restrinja
a estupidez no vazio e bastará uma brasa para
incendiar o mundo e sei que a miséria
aspirará o ar bem fundo pra estourar a razão


(do livro Os sempre, 2003).

sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Cioran, o Romeno que sabia francês (amargura e lucidez)



Em 1937, Cioran chega a Paris para fazer uma tese sobre Nietzsche que jamais concluiu, e passa dez anos escrevendo em romeno sem publicar nada. Decidido a mudar de língua, submete - em 1947 - à editora Gallimard o manuscrito de "Breviário de decomposição", que é aceito. No entanto, ele o reescreve quatro vezes, tentando vingar-se da observação de um de seus amigos franceses: "você escreve em um francês de meteco". Em 1951, o livro recebe o prestigioso prêmio Rivarol e, alguns anos depois, Saint-John Perse saúda Cioran como "o maior dos prosadores da língua francesa desde Valéry".

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SOBRE CERTAS SOLIDÕES

Há corações que Deus não poderia contemplar sem perder sua inocência. A tristeza aquém da criação: se o Criador houvesse penetrado antes no mundo teria comprometido seu equilíbrio. Quem crê que ainda pode morrer não conheceu certas solidões, nem o inevitável da imortalidade percebida em certas angústias ...A sorte dos modernos é haver localizado o inferno em nós: se tivéssemos conservado sua figura antiga, o medo, sustentado por dois mil anos de ameaças, nos teria petrificado. Não há pavores que não estejam transpostos para o subjetivo: a psicologia é nossa salvação, nosso subterfúgio. Antigamente, pensou-se que este mundo havia surgido de um bocejo do diabo: hoje, só é erro dos sentidos, preconceito do espírito, vício do sentimento. Sabemos a que nos ater ante a visão do Juízo Final de Santa Hildegarda ou ante a do inferno de Santa Teresa: o sublime - seja o do horror ou o do da elevação - está classificado em qualquer tratado de doenças mentais. E embora nossos males nos sejam conhecidos, nem por isso estamos livres de visões, mas já cremos nelas. Versados na química dos mistérios, explicamos tudo até nossas lágrimas. Algo permanece, porém, inexplicável: se a alma é tão pouca coisa, de onde vem nosso sentimento de solidão? Que espaço ocupa? E como substitui, subitamente, a imensa realidade desvanecida?

(texto de Breviário de Decomposição)

Sylvia Plath - Clausura e papoulas



Papoulas em Julho

Pequenas papoulas, pequenas chamas do inferno,
Vocês fazem mal?

Vocês se mexem. Não posso tocá-las.
Meto as mãos entre as chamas. Nada me queima.

E me cansa ficar aqui olhando
Vocês se mexendo assim, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.

Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!

Há fumos que não posso tocar.
Onde estão seus ópios, suas cápsulas que enjoam?

Se eu pudesse sangrar, ou dormir! –
Se minha boca se unisse a essa ferida!

Ou se seus licores me sedassem, nessa cápsula de vidro.
Entorpecendo e acalmando.

Mas sem cor. Incolor.

(Sylvia Plath, tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça)

Poemas do Livro AcqualuV


(foto do Morro das Pedras, Ilha de Santa Catarina)


no morro
das pedras ainda
se vê a mão
estendida e carcomida
foram as areias
jorradas
das trevas de dentro.
um mento
estreito, o oco
fraco a ressoar
o sino perdido
a faca final.

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lado a lado
encurralado

a maçã branca
a vela morta

os lábios
fugindo de sal


(Anderson Dantas, do livro AcqualuV - poemas)

domingo, 13 de agosto de 2006

Paul Celan (Austríaco ou Romeno?!)



A POESIA DO EXÍLIO


UM JUDEU, nascido na Romênia, que escreveu em alemão e viveu na França. Vítima da Segunda Guerra Mundial, sobrevivente dos campos de concentração, suicida antes dos cinqüenta anos. Paul Celan foi um poeta do exílio, um forasteiro mesmo para a língua de seus próprios poemas, e se sua vida foi exemplar em sua dor, um paradigma da destruição e da confusão na Europa em meados deste século, sua poesia é desafiadoramente idiossincrática, sempre e absolutamente sua. Na Alemanha, é considerado equivalentemente a Rilke e a Trakl, o herdeiro do lirismo metafísico de Hölderlin, e em outros lugares sua obra goza de uma estima semelhante, provocando afirmações como o recente comentário de George Steiner de que Celan é “quase certamente o maior poeta europeu do período pós-1945”. Ao mesmo tempo, Celan é um poeta terrivelmente difícil, tanto denso como obscuro. Ele exige tanto do leitor e, em suas últimas obras, suas elocuções são tão aforísticas, que é quase impossível apreender todo seu sentido mesmo após várias leituras. Furiosamente inteligente, impelido por uma força lingüística estonteante, os poemas de Celan parecem explodir na página, e conhecê-los pela primeira vez é um evento memorável.

(Paul Auster, fragmento de ensaio)

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JÁ NÃO É MAIS
este
peso às vezes
carregado contigo
até a hora. É
outro.

É a carga que detém o vazio,
vazio que con-
tigo iria.
Não tem, como tu, um nome. Talvez
sejam a mesma coisa. Talvez
um dia também me chames
assim.

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IR-AO-FUNDO,
a palavra que lemos.
Os anos, as palavras desde então.
Somos sempre os mesmos.

Sabes, o espaço é infinito,
sabes, não precisas, voar,
sabes, o que se escreveu em teu olho
aprofunda-nos o fundo.

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QUANDO ME ABANDONEI EM TI,
eras pensamento,

algo
murmura entre nós dois:
do mundo a primeira
das últimas
asas,

em mim cresce
a pele sobre
tempestuosa
boca,

tu
não chegas
até
ti.


(Paul Celan, traduções de Claudia Cavalcanti)

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Ingeborg Bachmann (die gestundete zeit)



O TEMPO APRAZADO


Vem aí dias difíceis.
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefeceram ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoceiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.

Do outro lado enterra-se a amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe o silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.

Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros.

Vem aí dias difíceis.

sábado, 29 de julho de 2006

ALMA BEAT (onde tudo começou)




Ela adorava olhar as flores
cheirar as frutas
E as folhas lhe falavam de amor

Mas uns marujos já de porre
penetraram no sono dela
semeando sêmen
na paisagem virgem

Numa certa idade
seu coração pegou a olhar
as margens perdidas

E ouviu passarinhos verdes cantando
lá do outro lado do silêncio


Lawrence Ferlinghetti, in A Coney Island of the Mind.


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A catedral da desordem


A nossa batalha foi iniciada por Nero e se inspira nas palavras moribundas: “ Como são lindos os olhos deste idiota”. Só a desordem nos une. Ceticamente, Barbaramente, Sexualmente. A nossa Catedral está impregnada do grande espetáculo do Desastre. Nós nos manifestamos contra a aurora pelo crepúsculo, contra a lambreta pela motocicleta, contra o licor pela maconha, contra o tênis pelo box, contra a rádio-patrulha pela Dama das Camélias, contra Valéry por D. H. Lawrence, contra as cegonhas pelos gambás, contra o futuro pelo presente, contra o poço pela fossa, contra Eliot pelo Marquês de Sade, contra a bomba de gás dos funcionários públicos pelos chicletes dos eunucos e suas concubinas, contra Hegel por Antonin Artaud, contra o violão pela bateria, contra as responsabilidades pelas sensações, contra a trajetória nos negócios pelas faces pálidas e visões noturnas, contra Mondrian por Di Chirico, contra a mecânica pelo Sonho, contra as libélulas pelos caranguejos, contra os ovos cartesianos pelo óleo de Rícino, contra o filho natural pelo bastardo, contra o governo por uma convenção de cozinheiros, contra os arcanjos pelos querubins homossexuais, contra a invasão das borboletas pela invasão dos gafanhotos, contra a mente pelo corpo, contra o Jardim Europa pela Praça da República, contra o céu pela terra, contra Virgílio por Catulo, contra a lógica pela Magia, contra as magnólias pelos girassóis, contra o cordeiro pelo lobo, contra o regulamento pela Compulsão, contra os postes pelos luminosos, contra Cristo por Barrabás, contra os professores pelos pajés, contra o meio-dia pela meia-noite, contra a religião pelo sexo, contra Tchaikowsky por Carl Orff, contra tudo por Lautréamont.



Roberto Piva, em Os que viram a carcaça, Março de 1962, SP.


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Para alguns amigos


o som da esperteza
o som do céu e do mar.

o aperitivo de uma noite amarga.
amigos amargos que
discutem quem fará o elogio fúnebre,
semi-homens amargos tentando roubar suas mulheres,
semi-mulheres amargas se deixando roubar.

me levou 15 anos para humanizar a poesia
mas será preciso mais do que eu
para humanizar a humanidade.

as boas almas não irão fazê-lo
a anarquia não ira faze-lo
pretos
amarelos
índios
latinos
eles não irão fazê-lo.

acredito na força da mão sangrenta
acredito no gelo eterno
eu exijo que nós morramos
de lábios azuis e sorrindo contra a impossibilidade
de nós mesmos
esticados sobre nós mesmos.

nos encontramos, uma vez,
numa adega escura de Barcelona, mas então
nos separamos. Afinal
algumas pessoas foderão um poste de luz sob
o luar.

meu elogio? quem o lerá? ao menos terei uma
sepultura? quem ficará feliz no meu
enterro? mais um maldito gênio se
foi. idiotas adoram enterrar
deuses.

enquanto isso esperam que minha máquina de escrever falhe,
que meu amor diminua, que minha esperança diminua,
que minha dor aumente.
ah, meus amigos todos me desejam o
melhor das coisas.

idiotas discursantes raivosos de porta em porta
venham todos
para jogar seu veneno especial sobre mim e sobre
as pequenas coisas que são
minhas.

pequenas crianças-rato do universo
aproveitem o fato de que eu vos permiti insultar-me
aproveitem o fato de que eu abri a porta
aproveitem o fato de que eu ou envelheci
ou desapareci com o tempo.

ah, meus amigos
meus amigos
meus amigos.



Charles Bukowski, in Hymn from the Hurricane.


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O Crime


No animal ainda quente seu crime
Foi gracejo da secreta ação amarga humana
Suficiente para o riso da jovem
Com o sangue se esvaindo surdamente

Juntos comeram a rosa
E juntos enxugaram as línguas
Ante as brasas e os recortes de pele

Eles se amaram tanto
Até os olhos caírem por dentro
E as faces se despregarem



Gregory Corso, in Vestal Lady on Brattle


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Morte de todos os lados

“O Planeta está destruído”


Uma lua nova contempla nosso doce planeta doente
Orion já perseguiu a Ursa Imóvel por metade do céu
de inverno a inverno. Acordo, mais cedo na cama, cadáveres de
moscas
cobrem lençóis iluminados a gás, minha cabeça dói, têmpora
esquerda
fibra cerebral lateja pela Morte que Criei de todos os Lados.
Ratos envenenados no Galinheiro e mil piolhos
Mortos com spray de alvos arsênicos infiltrando-se no riacho,
Baratas urbanas
Pisoteadas em chãos de cozinhas Rurais. Nada de bebês pra mim,
Reduzir à metade hordas de meninos & meninas da Terra &
respirar livres
dizem Revolucionários peritos Computadores:
Metade da população de germes desse globo azul é mais do que
bastante
proteger pulmão nublado do fedor da pneumonia.
Chamei Exterminador o Qual ensopou Parede Chão com
óleo letal pra percevejos. Quem lá de me ensopar o cérebro de óleo
letal?
Acordo antes do amanhecer, temendo meus pertences de madeira,
meus livros gnósticos, minha boca altissonante, velhos amores
silenciosos, encantos
transformados em dinheiro-imagem, meu corpo gordo assexuado,
Pai morrendo,
Cidades da Terra envenenadas em guerra, minha arte sem
esperanças –
Mente fragmentada – e ainda abstrata – Dor na
têmpora esquerda vida em morte –


Allen Ginsberg, in The Fall of América – Poems of These States,
September, 26, 1969

domingo, 16 de julho de 2006

MAIAKÓVSKI: Tovarish Temerário
























A FLAUTA-VÉRTEBRA

Prólogo

A todos vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo o caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
Esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
Na flauta de minhas próprias vértebras.

NOSSA MARCHA



Troa na praça o tumulto!
Altivos píncaros – testas!
Águas de um povo dilúvio
lavando os confins da terra.

Touro mouro dos meus dias.
Lenta carreta dos anos.
Deus? Adeus. Uma corrida.
Coração? Tambor rufando.

Que metal será mais santo?
Balas-vespas nos atingem?
Nosso arsenal é o canto.
Metal? São timbres que tinem.

Desdobra o lençol dos dias
cama verde, campo escampo.
Arco-íris arcoirisa
o corcel veloz do tempo.

O céu tem tédio de estrelas!
Sem ele, tecemos hinos.
Ursa-Maior, anda, ordena
para nós um céu de vivos.

Bebe e celebra! Desata
nas veias a primavera!
Coração, bate a combate!
O peito – bronze de guerra.



(Traduções de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)

sexta-feira, 14 de julho de 2006

Satolep: A Armada Poética de Vitor














Vitor Ramil. Irmão de Kleyton e Kledir. Talvez a dupla as pessoas tenham ouvido falar, mas de Vitor, um pouco mais raro. A não ser na capital gaúcha Porto Alegre e nas sombras tristes (figuras) de Satolep. Vá lá, nos pampas. Uruguay. Até mesmo em Genebra. Vitor não é conhecido e reconhecido no Brasil. Porque suas composições são poemas, poemas musicados. Ora, e quem quer poesia na Música? Quem quer música na Poesia? Rimbaud, Maiakóvski, Augusto de Campos, Borges, e tantos outros. Os amigos invisíveis mas verdadeiros, são a argila criadora do demiurgo. Ele avança junto com os peixes e os arpejos no frio da campanha. Vitor pertence a esta terra, repleta de seus frios. Notório buscador de ritmos e sonoridades raras, parceiro de músicos que não se vendem por milhões de cópias. Não há rima fácil, refrão medíocre e letras descartáveis no “Corcunda de Satolep”. Tudo parece doído, reerguido, remontado, destruído e renovado. Tudo parece uma longa e lamentosa milonga.
“Americana Pátria, morena / Quiero Tener / Guitarra y canto libre / En tu amanecer / No pampa meu pala a voar / Esteira de vento e luar / Vento e luar ...
Vitor é para poucos. ainda bem.



(Ibicuí da Armada)



Entre o meu e o teu ser
Tudo é permitido
Lambaris de cristal
E um bugio largado e rouco
De uma cordeona fantasma
Teu eco me responde
No timbre dos caudilhos!
Ibicuí da Armada
A mulher cavalga sobre teu leito

Um silêncio muito antigo
Cai sobre os insetos
Chegam homens maragatos
Num pequeno bote
Que encosta sem pressa
Na outra margem
O ronco de queda d´água
Me chama de louco!
Ibicuí da Armada
A mulher cavalga sobre teu leito

São três homens
Três facões
Com três lenços rubros
São três sombras
Três chapéus
Que entram pela mata
Três luas brilhando no aço
São três degoladores
Por sorte não me viram!
Ibicuí da Armada
A mulher cavalga sobre teu leito

As cigarras recomeçam
Com seu canto triste
Eu mergulho como um bicho
E nadando em águas profundas
Revelo poemas aos peixes
São versos do soldado
Do poeta russo!
Ibicuí da Armada
A mulher cavalga sobre teu leito

Limo e verbo
Lodo e rima
Louca a bala
Laica
Correnteza
Movimentos
Lanço a poesia molhada
Ao toque dos seres gelados
E quando volto à tona
Os homens me descobrem!
Ibicuí da Armada
A mulher cavalga sobre teu leito

São três palas
Três anéis
Com três vozes duras
São três golpes
Três metais
E as três luas me partem ao meio
Brilhando no espelho
Das lâminas
Meu corpo vai-se embora
Na trilha das traíras
E minha cabeça livre
No gelo dos cometas!
Ibicuí da Armada
A mulher cavalga sobre teu leito!

quinta-feira, 13 de julho de 2006

E Assim Falou ... NIETZSCHE



Do espírito de gravidade


1.


Minha linguagem – é a linguagem do povo: de modo por demais grosseiro e sincero falo eu, para o gosto dos casquilhos. E mais estranha ainda soa minha palavra aos ouvidos de todos os plumitivos e escrevinhadores.
Minha mão – é a mão de um doido; ai de todos as mesas e paredes e onde mais haja lugar para desenhos de doido e gatafunhos de doido!
Meu pé – é um pé de cavalo; com ele pateio e galopo, desembestado, pelos campos em fora e dou a alma ao diabo no prazer da corrida desabalada.
Meu estômago – será um estômago de águia? Porque gosta, mais que tudo, de carne de cordeiro. Certamente, porém é um estômago de ave.
Parcamente alimentado e de coisas inocentes, pronto ao vôo e impaciente por voar, por voar longe – tal é o meu modo de ser; como não deveria haver nele algo do modo de ser das aves!
E, especialmente, que eu seja inimigo do espírito de gravidade é modo de ser de ave; e, na verdade, inimigo ferrenho, inimigo mortal, inimigo nato! Oh, para onde já não voou e, voando, desgarrou-se a minha inimizade?
Poderia, até, pôr isso em música e cantá-lo – e quero cantá-lo; se bem que me encontre sozinho na casa vazia e deva cantar para os meus próprios ouvidos.
Outros cantores há, sem dúvida, para os quais somente a casa cheia torna a garganta melíflua, a mão eloqüente, os olhos expressivos, o coração desperto; não me assemelho a eles.

quarta-feira, 12 de julho de 2006

Ana Cristina Cesar (poema-retalho, fragmentos, tipo ... que tipo?!)








Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d´água
a espera do café

quarta-feira, 21 de junho de 2006

O OUTRO CADERNO






morro das pedras


pensando em Celan

havia no tempo

este sonho antigo

aqui a exumação perfeita

do mistério

da origem para a origem

neste paredão de águas

a onda se distende

como um negro gatilho

e a sombra se fecha

como um punho no ar

havia na boca

este gosto amargo

de papoulas & memórias

faca na garganta

a escuma e a escama se incendeiam

deixando o silêncio

só o silêncio

orquestra de areias

os peixes riem.

eu entro no mar chorando

Anderson Dantas

O SEGUNDO CADERNO
















fine


Siamo sporchi di guerra e Orfeo brulica
d´insetti, è bucato daí pidocchi,
e tu sei morta

Salvatore Quasimodo


sem diálogo pus-me ver
cordames nus cardumes crus
teus cabelos negros

cheirados e mordidos

pimenta e doçuras em sangue misturados.

na ilhalinda de minhas facas costuradas à face
tu laylaluzente e lalenda de lendas e águas
onde jorra james joyce e jorro de jocosos jatos

estou molhado e só por ti. tu que andas morta
e estás morta por dentro de meus olhos
jaz jazida negra
carvão de poema estéril abandonada

não fostes nunca e nunca serás este fogo que me caibo.

porque estás morta e não és eurídice! não és eurídice!
e orfeo sofre com estas feridas de picadas de piolhos!

eu sofro por mim que te quis e nem sabias que morrias
que morria também em frente à ilhaverde de meu rosto
raso de pássaros raso de águasmortas
músico e muito mais que vivo porque poeta
o poeta vermelho que não amas e nem percebes

porque estás morta


Anderson Dantas

Poemas do livro CADERNO de LEILA & LAYLA




O CADERNO EXPERIMENTAL


o amanhecerdes

tiro estes verbos de outros
para fazer-te ouro em minha sega de trigo
beirado de vento ao lado de minha palha trêmula
nas neves desse inverno casto
prata vasta vaga nua
o teu magro corpo tem ardências novas a agil(idade)
flexível movida de serpeio e lágrima
amanheci com o coração em festa
foi esta a palavra roubada
porque em festa busca meu corpo
meu eu-funil de fogos castanhos
venho pela senda desta sede
coito de rios
vens. e não sabes. sou outros. animal de revéis.
e(x)sbarro em tua carne amanhec(ida) medo. desconforto.
sanguescuro de tua vulva. te comungo com esta hóstia negra
que é meu altar santo. maldito. como ferrugens.
teu ânus queima, arde. toda minha, dizes.
és meu peixe
a fêmea livre sem redes, digo.
para os dias de sol brincando
os olhos acima sem deus.
porque amas minhas nádegas manancial e peito de funduras
as que não vê.
nas sombras sou um anjo maroto
tenho azuis que me descrêem punhais que me assolam
e uma lua para assassinar
és para mim a cavalgadura
gozo
porque amasmeupau
e meu esperma será teu
alimento. sol. rio.
tiro estas dores de mim e confesso que são feridas novas
Anderson Dantas

domingo, 18 de junho de 2006

ARTAUD e o CINEMA


Antonin Artaud, continua a perturbar profundamente a cultura ocidental. Repudiando com a mesma indignação o naturalismo estéril e o esteticismo dos formalistas, Artaud devota-se à utopia de uma arte “terapêutica da alma”, onde a vida é celebrada em ritual sagrado.
Ele nos convida a um percurso ainda arriscado pelos obscuros caminhos da criação.

Sérgio Coelho

RESPOSTA A UMA PESQUISA


1 – Que Tipo de Filme Você Gosta?
2 – Que Tipo de Filme Você Gostaria que fosse Criado?

1º. Gosto de cinema.
Gosto de qualquer tipo de filme.
Mas todos os tipos ainda estão por criar.
Acredito que o cinema pode admitir apenas um certo tipo de filme: só aquele onde todos os meios de ação sensual do cinema tiverem sido utilizados.
O cinema implica uma subversão total de valores, uma desorganização completa da visão, da perspectiva, da lógica. É mais excitante que o fósforo, mais cativante que o amor. Não podemos nos dedicar indefinidamente a destruir seu poder de galvanização pelo uso de assuntos que neutralizam seus efeitos e pertencem ao teatro.
2º. Exijo, portanto, filmes fantasmagóricos, filmes poéticos, no sentido denso, filosófico da palavra; filmes psíquicos.
O que não exclui nem a psicologia, nem o amor, nem o desnudamento de nenhum dos sentimentos do homem.
Mas filmes onde se opere uma trituração, um remanejamento das coisas do coração e do espírito, a fim de lhes conferir a virtude cinematográfica que se está buscando.
O cinema exige temas excessivos e uma psicologia minuciosa. Exige a rapidez, mas sobretudo a repetição, a insistência, a reiteração. A alma humana em todos os aspectos.
(...)
O cinema tem sobretudo, a virtude de um veneno inofensivo e direto, uma injeção subcutânea de morfina. É por isso que o objeto do filme não pode ser inferior ao poder de ação do filme – deve conter o maravilhoso.
Antonin Artaud


(Linguagem e Vida, Editora Perspectiva – Tradução de Sílvia Fernandes)

sexta-feira, 16 de junho de 2006

Conto do Livro PAPEL DE ARROZ ou CONTOS DA MELHOR MORTE


O Fazedor de Sombras


Caminho para o pátio escuro. foi aqui que tudo começou. eu sempre fui assim, deste jeito, esta cara insípida. Quando criança eu gostava de ficar à espreita, contando sombras, assustando as pessoas com pequenos miados, eram horríveis mesmo, devo confessar. Eu falei dos miados, mas as pessoas, as pessoas também são horríveis. Não lembro de tê-las perto, foi uma infância só. nem lembro da cor dos cabelos de minha mãe, ou se meu pai vivia conosco. Eu sempre estava andando pelas noites, entrando em cemitérios, vigiando os gatos nos muros, observando os seus andares felinos. de tanto observar, estudar seus hábitos, seus saltos, é que me tornei isto. silencioso, sombrio, ágil, imerso nas silhuetas da noite, assustando os transeuntes. Quando contei dez anos, apesar de ter um físico mirrado, com jeito anêmico, as pessoas me temiam ou eram agressivas, escorregadias comigo. na verdade, nada me animava. nada valia a pena. apenas observar e meter medo, que prazer! foi com esta idade que fiquei aleijado. sim, agora caminho, me arrasto ou simplesmente me locomovo nesta cadeira de rodas maldita! foi na noite mais escura do ano que persegui um enorme gato preto. ele tinha algo diferenciado dos outros e parecia que me chamava. tudo parecia ter ficado para trás, não sei por quanto tempo e o quanto corri, andei e pulei pelos muros até ficar bem próximo dele. seu olho era o abismo. tentei tocá-lo, mas ele eriçou seus pêlos e mostrou-me umas garras poderosas, ninguém ousaria chegar mais perto. como um samurai sábio de sua força e serenidade, ele ronronou e prosseguiu andando calmamente, me levando a umas ruínas. lá, ele sentou e me observou por muito tempo. como numa hipnose ou cansaço ou algo fora de minha razão pequena, não pude resistir mais e acabei cochilando uns segundos. e então, não sei porque motivo, com um salto fantástico ele me atacou. arranhou e mordeu meu rosto, minha barriga, meus braços. eu uivava de dor, não tinha forças para revidar nem sequer fugir dali, no entanto, consegui alcançar para golpeá-lo, um tijolo e um pedaço de ferro que haviam pelas ruínas desertas. consegui me desvencilhar por preciosos instantes e pus para correr, olhei para trás, e ele vinha como uma pantera para cima de mim, eu sentia o sangue escorrendo de meu rosto, minhas mãos rasgadas. corri umas três quadras, e olhei novamente, ele havia desistido. e então, quando virei para frente eu o vi em cima do muro, a dois metros da minha cara. ele parecia sorrir. saltou para o outro lado do muro e se misturou à negritude da noite. Fui para casa exausto, correndo meus líquidos, sangue, lágrimas e suor pela excitação da corrida. nada mais me movia, apenas a hipnose do ocorrido, nem olhei para o lado quando um caminhão me atropelou e esmagou minhas pernas.

Caminho para o pátio escuro. foi aqui que tudo começou. eu sempre fui assim, deste jeito, esta cara insípida. agora, não posso mais me ocupar de ficar assustando pessoas e desenvolvi outro prazer mais marcante. ainda trago comigo as cicatrizes profundas no meu rosto. fiquei horrível, não posso caminhar e ainda por cima estes talhos pelos olhos assustados e violentos. não sei porque razão mas tenho afinidade com gatos. todos eles se aproximam de mim. e tenho feito deste fenômeno a minha mais macabra predileção. depois de algum tempo, ao voltar do hospital, meus pais me bateram ainda mais um pouco, em casa. disseram que eu fosse me virar, pois estavam se separando, e nem sabiam para onde iam. fiquei naquela velha casa, caindo aos pedaços. uma vizinha me ajuda, trazendo carne crua para eu comer. assim, como como os gatos. só carne, nada mais. a velha bruxa chega, me alcança um prato sujo, uma faca e um garfo e eu devoro a carne podre que me traz. não tenho cama. acho isso besteira, durmo na cadeira de rodas. tenho poucos e negros dentes pela boca. tenho tossido muito. às vezes me cai às mãos alguns livros. leio só o que me interessa. do resto limpo o rabo. a cadeira de rodas está um nojo, fede a merda. achei estes versos interessantes daquele poeta francês que escreveu Les Chats:

Amis de la science et de la volupté,
Ils cherchent le silence et l´horreur des ténèbres;
L´Érebe les cût pris pour ses coursiers funèbres,
S´ils pouvaient au servage incliner leur fierté.

Mas olha só, vou lhes contar o que faço, agora que ando assim, sem espreitar, não preciso mais disso. os gatos vem até mim, nem faço força. dias destes veio um gato pequeno, não era filhote, era um adulto pequeno, de cor amarela, mostrei-lhe um pedaço de carne e ele se alojou preguiçosamente no meu colo. acariciei-lhe as orelhas macias, pressionei todo seu corpo no meu pênis murcho, mas senti algo novo, movimentando meus nervos. delicadamente (só delicadamente é que se mata), peguei a faca com que como minha carne, e cravei-lhe nos flancos e barriga, esguichando sangue em cima de mim, lambi aquele que me saltou na cara. destripei aquele animalzinho todo ali, naquele momento. seus miados ainda estão em mim, como as raízes fazem parte de uma árvore. Noutra vez, fui até o cemitério à noite e vi uma gata malhada de preto e branco, parindo cinco lindos filhotinhos. ai, que prazer divino! apesar de estar alerta e furiosa para proteger os seus gatinhos, consegui me aproximar, acalmá-la e adquirir sua confiança. a alguns passos (ou a algumas rodadas de cadeira), vi uma pá, foi este o destino em sua cabeça: duras pauladas. desmanchei-lhe o crânio. quanto aos gatinhos, pus todos em um saco e os levei para casa, ronronavam docemente. preparei com a ajuda da bruxa, uma bela panela de água fervente, e os joguei um a um no fundo do inferno, que guinchos lancinantes, meus camaradas! as peles se despregando dos ossos, um boiar de pêlos claros e escuros, que maravilha! se o cheiro não fosse tão repugnante, eu juro, eu devoraria aquele carnes infames. olha, meu deus! pusesse delícia no meu caminho escuro.

O que tenho que reclamar são as brutas dores nas costas. de tanto ficar sentado não tenho mais posição que me ajeite a carcaça. não consigo nem mais ler direito. e a tal velha não sabe ler, a cretina. Mas voltemos aos gatos. dias destes, entrou pela casa um macho cinza. robusto, atrevido, impávido. me olhou com desprezo e se punha a uma distância segura. chamei-o, fiz gracejos. que um pobre velho tem que passar nesta vida. ele, nem se dava o trabalho de endireitar o corpo para me ver, talvez o cheiro de minha carne fedida, havia lhe chamado atenção às narinas. a geladeira antiga, entreaberta, exalava o pólen de minhas torvas refeições. com uma das patas graciosas e potentes, abriu a geladeira completamente e derrubou meu prato de carne. maldito! filho do diabo! corri com a cadeira para pegá-lo, mas ele se desviou com desdenhosa facilidade. se pondo do outro lado do cômodo, comia a carne com uma careta. ahá! viu seu saco de bosta? esta carne, só eu tenho estômago para comer. mais uma tentativa com a cadeira. deu em nada. gato insano. sai daqui, me deixa só. deixe-me aqui na minha escuridão. atento a mim, não notou a entrada da velha atrás, que havia ouvido o barulho do prato espatifando-se. A velha sabia ser minha cúmplice (se ela não fosse tão medonha), a gente poderia ter trocado umas carícias sujas. então ela o pegou pela parte superior do pescoço erguendo-lhe do chão, ele tentou arranhá-la com a espada das garras, mas não surtiu efeito seus golpes. então fui até o outro cômodo e procurei entre as redes de meu pai pescador, algumas iscas maiores, com ganchos bem afiados. voltei e olhei fixamente para aquele gato miserável. lembro que disse: - nunca mais vai ver nada! enfiei-lhe os ganchos pelos dois olhos, alcançando o oco. jorrou o sangue na velha e em mim. depois, pelas orelhas, o pendurei com o mesmo artefato. ele nem miou, já estava morto. ainda cortei-lhe as quatro patas e comi no jantar junto com a velha. tinha um gosto horrível.
Faz tempo que os gatos não aparecem mais para mim. nem trazem mais livros sequer. confesso que ando triste, nem mais minhas incursões por cemitérios e prostíbulos tem me dado alegria, devo admitir que o meu grande amor são os gatos. o seu ar de insolência e mistério. a sua zombaria de nós, humanos abjetos. a velha morreu. uma trombose, câncer ou aids, sei lá. Presumo que logo vou morrer também, tenho preguiça de pedir esmolas. Às vezes tento imitar os miados que dava quando criança, nas encruzilhadas, assustando as pessoas. como minha voz está tacanha, senhores! tudo em mim é cheiro e ar de perecimento. Com enormes dificuldades, e tossindo muito, resolvi dar minha última voltinha de cadeira de rodas. fui até aquelas ruínas de anos atrás. Onde tudo começou. ou pelo menos, para mim. andei de um lado para o outro. até achei que aquela barra de ferro era a mesma que atingiu aquele demônio negro. Tristemente fui voltando para casa, desta vez expelia um sangue preto das entranhas, parecia que cuspia todas as minhas coisas de dentro. senti-me como uma criança atropelada, golpeada no rosto, abandonada pelos gatos, pelos pais e pela velha decrépita. Todos estes anos, e eu esqueci que poderia ter escrito um ou dois romances pornográficos. Nunca tentei nada que me rendesse algum. Voltando com náuseas para casa, hoje sim, vou dormir no lado de fora. sim. quero ficar na frente da casa para que todos vejam meu corpo imundo, este trapo que navega numa cadeira toda suja de merda. sim. não tenho vergonha de meus despojos. Hoje vou dormir no lado do inferno. no muro, o gato negro miou escarnecendo.

Anderson Dantas

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