quinta-feira, 26 de outubro de 2006

CORTÁZAR, O esmagamento das gotas



O esmagamento das gotas

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore. Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada do cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.

domingo, 22 de outubro de 2006

ARTAUD, Carta ao Papa



Carta ao Papa

O confessionário não é você, oh Papa, somos nós; entenda-nos e que os católicos nos entendam.
Em nome da Pátria, em nome da Família, você promove a venda das almas, a livre trituração dos corpos.
Temos, entre nós e nossas almas, suficientes caminhos para percorrer, suficientes distâncias para que neles se interponham os teus sacerdotes vacilantes e esse amontoado de doutrinas afoitas das quais se nutrem todos os castrados do liberalismo mundial.
Teu Deus católico e cristão que, como todos os demais deuses, concebeu todo o mal:
1º. Você o enfiou no bolso.
2º. Nada temos a fazer com teus cânones, índex, pecado, confessionário, padralhada, nós pensamos em outra guerra, guerra contra você, Papa, cachorro.
Aqui o espírito se confessa para o espírito.
De ponta a ponta do teu carnaval romano, o que triunfa é o ódio sobre as verdades imediatas da alma, sobre estas chamas que chegam a consumir o espírito. Não existem Deus, Bíblia. Evangelho; não existem palavras que possam deter o espírito.
Nós não estamos no mundo, oh Papa confinado no mundo; nem a terra nem Deus falam de você.
O mundo é o abismo da alma. Papa caquético. Papa alheio à alma, deixe-nos nadar em nossos corpos, deixe nossas almas em nossas almas, não precisamos do teu facão de claridades.


(Antonin Artaud, tradução de Cláudio Willer)

Mais dos BEATS (uivos, de repente)



ESTOU FAZENDO MINETE NUMA BELEZA de mulher; é verão, estamos num quarto de sobrado que-não-sei-onde-fica, mas é perto da rua de Bunker Hill do Corcel Branco Indo para o Leste, onde, na noite anterior, andamos procurando um lugar escondido e escuro para trepar, na sombra enluarada de uma casa que puxava a nossa cama aberta, ou veículo; mas, depois de começar, percebendo que não era tão escuro assim e lá dentro da casa das tristes e quase imperceptíveis janelas vermelhas talvez nos estivessem vendo (alusões a Pauline Cole e eu, rindo na macia escuridão oral) – não sou rico, nem pobre ou feliz em matéria de amores. Agora estamos num quarto, de dia, e ela está sentada num banquinho que lembra o de ferro vermelho de Irene; e eu, de joelhos, gemendo diante dela, que retesa o corpo para trás, em êxtase, enquanto chupo e fodo – de repente me dou conta que um grupo de homens aglomerados no telhado da casa vizinha pode enxergar tudo, mas eles fingem que nem estão olhando no momento (passada a paixão, terminada a cegueira) em que levanto os olhos: no quarto há grandes janelas duplas que dão para todo o telhado – além disso, do outro lado do beco, uma mulher ficou dando risadas toda a manhã – vagamente, durante o ato, cheguei a pensar que fosse porque tinha nos visto, mas não me importei – No entanto, agora, ela ri enquanto me viro com malícia para todos os lados, em busca de possíveis observadores suspeitos, ali no quarto da eternidade com minha beldade nua –

(Book of dreams, Jack Kerouac)

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PARA JACK KEROUAC

Há alguns anos atrás, eu sonhava com panquecas em um lugar onde não havia nem papel higiênico.
Eu me queixei disso a Jack Kerouac por escrito.
Em resposta recebi uma carta falando de uma nova receita para panquecas conhecida, por coincidência, como HUNGRY JACK.
Ele não estava zombando de mim porque acabo de ver na TV um comercial que anuncia justamente esta marca, HUNGRY JACK.
Gostaria de aproveitar a ocasião para louvar este homem por sua honestidade e grande capacidade de observação.

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VIDE


O buraco negro vazio
Onde mamãe fala do frio
E eu não rio

Meu corpo vibrava
Um elefante dormia
Levaram minha mala e disseram que eu não girava

O que é que há com o meu rabo
Em Paris, eu tinha um rabo sem igual
Quando judeu me achava um intelectual


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TEORIAS NOTURNAS


Teorias noturnas desaparecem em atos de adultério.
A luz do dia se infiltra e os malabaristas filipinos
[somem.
O amigo do dia substitui o bandido da noite.
Nenhum papel a desempenhar. Aqui atos de
[de bravura valem pouco.
Vendo o obelisco em plena luz do dia.
Nenhum punho pela janela.


(Carl Solomon, em De repente, acidentes)


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Estão sentados numa cama baixa, coberta de seda branca. A garota abre as calças dele com dedos delicados e puxa fora seu peru, que é pequeno e duro. Como uma pérola, uma gota de lubrificante brilha em sua ponta. Ela acaricia a cabeça gentilmente: - Tire as roupas, Johnny! – Ele se despe com movimentos rápidos e seguros e fica nu de frente para ela, com o pau pulsando. Ela faz um gesto para que ele se vire, e ele pirueta pelo quarto, parodiando uma modelo, com a mão na cintura. Ela tira a blusa. Os seios são altos e pequenos, com bicos eretos. Tira suas calcinhas. Os pêlos púbicos são negros e brilhantes. Ele se senta a seu lado e estende a mão em direção ao seio. Ela detém as mãos dele.
- Querido, eu quero rodear você – sussurra ela.
- Não. Agora não.
- Por favor, eu quero.
- Está bem. Vou lavar a bunda!
- Não, deixe que eu lavo!
- Oh, esqueça, não está suja.
- Está, sim. Vamos, Johnny, venha!
Ela o leva até o banheiro. – Tudo bem, abaixe-se. – Ele cai de joelhos e se inclina para a frente, com o queixo no tapete do banheiro. – Por Alá – diz ele. Olha para trás e sorri para ela. Ela lava o cu dele com sabonete e água quente, enfiando o dedo bem dentro.
- Dói?
- Nãããããããão.
- Vamos, meu bem. – Ela o guia até o quarto de dormir. Ele se deita na cama de costas e joga as pernas por cima da cabeça, apertando os cotovelos por trás dos joelhos. Ela se ajoelha e acaricia a base de suas coxas, as bolas, correndo o dedo pela fenda eterna. Afasta as nádegas, inclina-se e começa a lamber o ânus, movendo a cabeça em círculos lentos. Pressiona as bordas do cu, lambendo mais fundo e mais fundo. Ele fecha os olhos e grunhe. Ela lambe a fenda eterna. As bolas pequenas e tesas... uma grande pérola aparece na ponta de seu pau circuncidado. Sua boca se fecha sobre a cabeça. Ela chupa ritmadamente para cima e para baixo, parando na subida e movendo a cabeça em volta num círculo. A garota brinca gentilmente com as bolas dele e desliza o dedo médio dentro do seu cu. Quando desce chupando até a raiz do membro, ela belisca sua próstata zombeteiramente. E o jovem sorri e peida. Ela está chupando o pau dele freneticamente. O corpo do garoto começa a se contrair, dobra-se em direção ao queixo. E cada vez a contração é mais prolongada. – Uiiiiii! grita ele, com todos os músculos tensos e o corpo inteiro, se esforçando para descarregar-se através do pau. Ela engole o esperma, que lhe enche a boca em jatos grandes e quentes. Ele deixa os pés caírem sobre a cama. Arqueia as costas e boceja.


(William Burroughs, in The naked lunch, trecho do texto A festa anual de A. J.)

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

BAUDELAIRE: O Patrono do Mal



A DESTRUIÇÃO

Sem cessar ao meu lado o Demônio se agita,
E nada ao meu redor como um ar impalpável;
Eu o levo aos meus pulmões, onde ele arde e crepita,
Inflando-os de um desejo eterno e condenável.

Às vezes, ao saber do amor que a Arte me inspira,
Assume a forma da mulher que eu vejo em sonhos,
E, qual Tartufo afeito às tramas da mentira,
Acostuma-me a boca aos seus filtros medonhos.

Ele assim me conduz, alquebrado e ofegante,
Já dos olhos de Deus afinal tão distante,
Às planícies do Tédio, infindas e desertas,

E lança-me ao olhar imerso em confusão
Trajes imundos e feridas entreabertas
- O aparato sangrento e atroz da Destruição!

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PROJÉTEIS E MEU CORAÇÃO A NU

O que é criado pelo espírito é mais vivo que a matéria.

O amor é o gosto de prostituir-se. Mesmo o prazer mais puro pode sempre conduzir a isso.

Que é a arte? Prostituição.

O amor pode provir de um sentimento generoso - o gosto de prostituir-se - mas logo é corrompido pelo gosto de propriedade.

O caráter profundo de algumas expressões vulgares: buracos que gerações sucessivas de formigas escavaram.

PROJÉTEIS, SUGESTÕES

O homem de letras também movimenta capitais e faz-nos desfrutar de uma certa ginástica do intelecto.

Amamos tanto mais as mulheres quanto mais estranhas elas nos parecem. Gostar de mulheres inteligentes e um prazer de pederasta. Por isso que a bestialidade exclui a pederastia.

O sentido do ridículo pode não excluir a caridade, mas isso é raro.

Da mulher. Ares.

Ares encantadores, que são fonte de beleza:

o ar saturado, o ar dominador

0 ar aborrecido, o ar voluntarioso,

o ar esgazeado, o ar perverso,

o ar indecente, o ar doentio,

o ar frio, o ar felino, misto de infantilidade,

o ar introvertido, de langor e de malícia.

MEU CORAÇÃO A NU

A mulher e o oposto do Dândi.

Deve pois nos causar repulsa.

A mulher tem fome e quer comer - sede, e quer beber.

No cio, quer ser comida.

Que glória!

A mulher é natural, isto é abominável.

Por isso mesmo ela é sempre vulgar, ou seja o contrário do Dândi.

Tornar-se um homem útil sempre me pareceu algo de muito detestável.

POLÍTICA

É por não ser ambicioso que não tenho convicções, como as entendem as pessoas do meu século.

Não há em mim qualquer base para uma convicção.

Há sempre uma certa covardia ou moleza nas pessoas de bem.

Só os aventureiros em convicções. De quê - De que têm de vencer. Por isso, vencem.

Por que eu venceria, se não tenho vontade de tentar?

Impérios esplendorosos podem assentar no crime, e nobres religiões em imposturas.

É preciso trabalhar, e se não for por gosto pelo menos por desespero; até porque, bem vistas as coisas, trabalhar é menos tedioso do que se divertir.

Imenso nojo dos cartazes.

O poeta, o padre e o soldado são a única coisa que ainda há de grandioso entre os homens: O homem que entoa o seu canto, o que abençoa, o que sacrifica e se sacrifica. O resto é feito para o chicote.

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Orides Fontela: A Teia do Silêncio



PEDRA

A pedra é transparente:
o silêncio se vê
em sua densidade.

(Clara textura e verbo
definitivo e íntegro
a pedra silencia).

O verbo é transparente:
o silêncio o contém
em pura eternidade.

(Transposição, 1966-1967)

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O GATO

Na casa
inefavelmente
circulam olhos
de ouro

vibre ( em ouro) a
volúpia
o escuro tenso
vulto do deus sutil
indecifrado

na casa
o imperecível mito
se aconchega

quente (macio) ei-lo
em nossos braços:
visitante de um tempo sacro (ou de um não tempo).


(Helianto, 1973)

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NUDEZ


Ainda há maior nudez: barreira
ininterrupta do silêncio
guardando em si a evidência das formas.

Ainda há maior nudez: evidência
sem mais sinais
exata em sua luz interna.

Ainda há maior nudez: a luz
infinda simplicidade
sem apoio além de si mesma.


(Alba, 1983)

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ÁGUAS


amargas
cobrem o
barco

as águas
salobras
trazem
o dilúvio, o naufrágio, o necessário
batismo.


Através do
silêncio
cai a
água

filtra-se
através do ser
a inextinguível
água
do silêncio.


(Rosácea, 1986)

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