sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Cioran, o Romeno que sabia francês (amargura e lucidez)



Em 1937, Cioran chega a Paris para fazer uma tese sobre Nietzsche que jamais concluiu, e passa dez anos escrevendo em romeno sem publicar nada. Decidido a mudar de língua, submete - em 1947 - à editora Gallimard o manuscrito de "Breviário de decomposição", que é aceito. No entanto, ele o reescreve quatro vezes, tentando vingar-se da observação de um de seus amigos franceses: "você escreve em um francês de meteco". Em 1951, o livro recebe o prestigioso prêmio Rivarol e, alguns anos depois, Saint-John Perse saúda Cioran como "o maior dos prosadores da língua francesa desde Valéry".

__________________________________________


SOBRE CERTAS SOLIDÕES

Há corações que Deus não poderia contemplar sem perder sua inocência. A tristeza aquém da criação: se o Criador houvesse penetrado antes no mundo teria comprometido seu equilíbrio. Quem crê que ainda pode morrer não conheceu certas solidões, nem o inevitável da imortalidade percebida em certas angústias ...A sorte dos modernos é haver localizado o inferno em nós: se tivéssemos conservado sua figura antiga, o medo, sustentado por dois mil anos de ameaças, nos teria petrificado. Não há pavores que não estejam transpostos para o subjetivo: a psicologia é nossa salvação, nosso subterfúgio. Antigamente, pensou-se que este mundo havia surgido de um bocejo do diabo: hoje, só é erro dos sentidos, preconceito do espírito, vício do sentimento. Sabemos a que nos ater ante a visão do Juízo Final de Santa Hildegarda ou ante a do inferno de Santa Teresa: o sublime - seja o do horror ou o do da elevação - está classificado em qualquer tratado de doenças mentais. E embora nossos males nos sejam conhecidos, nem por isso estamos livres de visões, mas já cremos nelas. Versados na química dos mistérios, explicamos tudo até nossas lágrimas. Algo permanece, porém, inexplicável: se a alma é tão pouca coisa, de onde vem nosso sentimento de solidão? Que espaço ocupa? E como substitui, subitamente, a imensa realidade desvanecida?

(texto de Breviário de Decomposição)

Sylvia Plath - Clausura e papoulas



Papoulas em Julho

Pequenas papoulas, pequenas chamas do inferno,
Vocês fazem mal?

Vocês se mexem. Não posso tocá-las.
Meto as mãos entre as chamas. Nada me queima.

E me cansa ficar aqui olhando
Vocês se mexendo assim, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.

Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!

Há fumos que não posso tocar.
Onde estão seus ópios, suas cápsulas que enjoam?

Se eu pudesse sangrar, ou dormir! –
Se minha boca se unisse a essa ferida!

Ou se seus licores me sedassem, nessa cápsula de vidro.
Entorpecendo e acalmando.

Mas sem cor. Incolor.

(Sylvia Plath, tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça)

Poemas do Livro AcqualuV


(foto do Morro das Pedras, Ilha de Santa Catarina)


no morro
das pedras ainda
se vê a mão
estendida e carcomida
foram as areias
jorradas
das trevas de dentro.
um mento
estreito, o oco
fraco a ressoar
o sino perdido
a faca final.

***************************************************

lado a lado
encurralado

a maçã branca
a vela morta

os lábios
fugindo de sal


(Anderson Dantas, do livro AcqualuV - poemas)

Total de visualizações de página